terça-feira, 2 de junho de 2009

Saint-Exupéry e o AF 447

Saint-Exupéry é conhecido, sobretudo, pelo Pequeno Príncipe, mas escreveu outros textos e romances maravilhosos, como Terra dos Homens, editado no Brasil inicialmente pela José Olympio Editora, com tradução primorosa de Rubem Braga. Neste livro, Saint-Exupéry narra as aventuras dos seus “colegas de linha”: Mermoz, Guillaumet (a quem ele dedica o livro), entre outros. A linha, no caso, era a rota aérea pela qual o correio era transportado. No caso, Toulouse-Casablanca-Dacar.

Esses homens não apenas asseguraram o transporte do correio aéreo, mas foram os primeiros a cruzar estas rotas. Depois de torná-las menos desconhecidas, os protagonistas do livro, sempre pioneiros, partiam para outras experiências : vôos noturnos, em hidroavião, sobre os Andes. Boa parte das aventuras do livro é relacionada a acidentes em que os pilotos se salvaram de forma miraculosa, inclusive o próprio autor que, em pane no deserto do Saara, é salvo por nômades no exato instante em que começava a sentir os sintomas (conhecidos em teoria por todos os pilotos que cruzavam aquele oceano de areia) da terrível morte por desidratação. Quem leu Terra dos Homens e o Pequeno Príncipe percebe que este livro é fortemente inspirado no acidente descrito naquele.

Todos os pilotos citados aqui - e quase todos os citados por Saint-Exupéry- depois de terem sido salvos várias vezes de forma incrível, acabaram finalmente por morrer em missões, inclusive o próprio Saint-Exupéry. O desaparecimento do avião do qual decolou da Córsega em 31 de julho de 1944 é, até hoje, cercado de mistério. Tal como o vôo Air-France que partiu do Rio no dia de 31 de maio de 2009 com destino a Paris.

Terre des Hommes

Capítulo 2 – Os Companheiros
(sobre Guillaumet)

“Já se haviam passado cinqüenta horas que você desaparecera numa travessia dos Andes, durante o inverno. Voltando do fundo da Patagônia, fui ao encontro do piloto Deley, em Mendoza. E nós dois, durante cinco dias, esquadrinhamos aquela confusão de montanhas, sem descobrir coisa alguma. Nossos dois aparelhos não bastavam. Parecia-nos que cem esquadrilhas, navegando cem anos, não acabariam de explorar aquele enorme maciço cujos picos se erguiam até sete mil metros. Havíamos perdido toda a esperança. Os próprios contrabandistas, os bandidos que lá embaixo fazem um crime por cinco francos, recusavam-se a se aventurar nos contrafortes das montanhas. “Arriscaríamos nossas vidas” - diziam eles. “Os Andes, no inverno, não devolvem os homens”. Quando eu e Deley descemos em Santiago os oficiais chilenos também nos aconselharam a suspender as pesquisas. “É o inverno. Esse companheiro de vocês, se sobreviveu à queda, não sobreviveu à noite. A noite, lá em cima, quando passa sobre o homem transforma-o em gelo”. E quando eu novamente me infiltrava entre os muros e os pilares gigantescos dos Andes já sentia que não estava mais procurando você: velava o seu corpo, em silêncio, numa catedral de neve.

Afinal, depois de sete dias, quando eu almoçava, no intervalo de dois vôos, num restaurante de Mendoza, um homem empurrou a porta e gritou...oh, apenas isto:
- Guillaumet... vivo!
E todos os desconhecidos que ali estavam se abraçaram.

Dez minutos mais tarde eu partia com dois mecânicos, Lefebvre e Abri. Quarenta minutos depois descia ao longo de uma estrada, tendo reconhecido, não sei como, o carro que o conduzia para não sei onde, nos lados de São Rafael. Foi um belo encontro: choramos todos e esmagamos você em nossos abraços, vivo, ressuscitado, autor de seu próprio milagre. Foi então que você exprimiu, na sua primeira frase inteligível, um admirável orgulho da espécie: “O que eu fiz, palavra que nenhum bicho, só um homem, era capaz de fazer...”