terça-feira, 28 de dezembro de 2010

lucid dream ii: the dream


Adormeço tendo, na véspera, me programado para tentar sonhar de forma lúcida. No primeiro despertar real, por volta das 5 da manhã, não trago, porém, lembrança de sonho algum. Impossível portanto saber se eu tivera ou não o tão esperado sonho lúcido.

Despeço-me do meu irmão e tento voltar a dormir, ainda pensando nas questões discutidas na noite anterior: sonho lúcido, paralisia do sono, falso despertar, entre outras.

Volto a adormecer e logo começo a sonhar. Tenho consciência de que sonho. O sonho lúcido viera. E ainda por cima, generoso, pois me concedia um certo controle sobre si. Decido descer uma montanha de neve em cima de um snow board. Dito e feito. Não controlo a forma da montanha, nem a velocidade da descida, mas consigo controlar mais ou menos as manobras. E a sensação é incrível, uma velocidade nunca experimentada por mim antes, e manobras com vôos impossíveis. Tudo vai bem, até que começo a cair, já sem a prancha no pé, sobre nuvens cinzentas, o que me traz uma sensação angustiante.

Acordo (ou melhor, penso ter acordado) no leito onde adormecera, mas a sensação de estar caindo, rodando, é ainda muito forte. Para ter certeza de que acordara, abro os olhos e vejo-me na cama, mas não consigo me mexer. Sleep paralysis, que me acomete com certa frequência desde pequeno (ou melhor, desde criança). E, se por um lado, o sonho lúcido ocorre em ambientes variados e é sempre prazeroso - pois nos permite escolher o que se quer fazer (voar, sexo, surfar, etc.) - a paralisia ocorre comigo sempre no mesmo lugar, ou seja, no leito em que estou antes de começar a sonhar. Ela vem sempre acompanhada de uma sensação sufocante e forte de opressão. A impossibilidade de me mexer, conjugada a uma sensação de peso sobre o peito e/ou de estar sendo imobilizado por alguém (e às vezes a visões de “seres estranhos” se aproximando) é mais do que desagradável. Chega a ser aterrorizante mesmo. À medida que o fenômeno se repetia comigo ao longo dos anos, o terror foi se reduzindo, transformando-se em medo apenas, até ser substituído por uma sorte de resignação.

Consigo - não sem esforço - sair finalmente do estado de paralisia. Levanto-me, bastante aliviado, como sempre depois deste tipo de fenômeno, e vou diretamente ao encontro do meu irmão para lhe contar sobre o sonho lúcido seguido de paralisia do sono que eu acabara de vivenciar. Começamos a conversar. A lembrança acerca dos assuntos falados com ele logo se torna tênue (lembro-me vagamente de ter mencionado um show da Teresa Cristina). Mais lacunas nas lembranças. Passo para a próxima cena, em que um gato sobe na cama, para logo em seguida ser expulso e ganhar uma bronca minha - pois sou alérgico. O bichano parece não ligar para minhas queixas, insiste e volta para a cama. Então eu o seguro com firmeza, imobilizando-o sobre o travesseiro, onde o folgadão decidiu ficar, mas logo me vejo em um impasse, pois receio que, ao soltá-lo, ele tente me arranhar. Decido então retirar minhas mãos de forma abrupta e, neste exato instante, acordo do segundo sonho que, ao contrário do primeiro, era, para mim, realidade até então. Com isso, pude concluir que o primeiro despertar que me tirou da paralisia fora falso, e que eu vivera consecutivamente os três fenômenos discutidos na véspera com meu irmão, ou seja, sonho lúcido, paralisia do sono e falso despertar.

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Neste dia 28/12, uma pessoa especial e muito talentosa faz aniversário. Com suas inescrituras, ela tem me deixado perplexo de admiração e pleno de uma inspiração que, por sinal, vem ajudando a alimentar este blog.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

lucid dream i: reality


Fazíamos um programa típico de domingo à noite, sobretudo quando se está em Sampa. Entramos eu, minha mãe, meu irmão e sua namorada – por conta de quem conversávamos em inglês, já que não falamos nem ucraniano, nem russo – numa destas pizzarias incríveis da capital paulista. O cenário lembrara ao meu irmão o filme O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante, de Peter Greenaway, comparação que se mostraria totalmente adequada à conversa que se seguiria.

Eu havia tido, na véspera, um sonho no qual eu tivera, durante alguns momentos, consciência de que se tratava de um sonho. Mais raro, eu conseguira ter algum controle (decidi voar) e me lembrar disto. Graças ao meu irmão, já sabia que eu havia tido um sonho lúcido e resolvi procurar por lucid dream na Wikipedia, o que me levou a ler sobre outros fenômenos relacionados, tais como sleep paralysis (que, aliás, tenho com muita frequência), false awakening, entre outros.

Meu irmão tendo estudado a fundo e desenvolvido bastante sua própria capacidade de sonhar lucidamente, a conversa do jantar girou em torno desses fenômenos. Repeti o que me lembrava de ter lido um pouco antes, e ouvi meu irmão dizer que abandonara a questão. Falamos dos filmes Waking Life (que eu vira recentemente, porém apenas parcialmente), e Inception (que eu vira duas vezes mas ele não) e que, ao meu ver, misturou à ficção muito do conhecimento atual sobre lucid dreaming.

Naquela mesma noite, antes de dormir, releio os verbetes da véspera, em especial lucid dream e aprendo que uma das condições necessárias para se desenvolver a capacidade de vivenciar o fenômeno é a de se recordar do sonho e que uma simples programação neurolinguística poderia me ajudar a fazê-lo. Decido então repetir em pensamento “vou sonhar lucidamente, vou controlar meu sonho e vou me lembrar dele”. Até adormecer.

Acordo com meu irmão entrando subitamente no meu quarto às 5 da manhã. Meu sono e meu sonho são interrompidos sem lembrança alguma e, portanto, impossível saber se este fora lúcido ou não. Levanto para ajudar meu irmão a encontrar um taxi, despeço-me dele em seguida e volto a dormir. O sono tarda. Penso em idéias para um texto envolvendo os fenômenos conversados no jantar. Começo então a desenvolver o roteiro de um fictício sonho lúcido em que sou um peão de um jogo de xadrez – um soldado medieval – derrotando outro peão em sua diagonal esquerda com uma espada no coração. Volto, enfim, a adormecer. Cerca de uma hora mais tarde acordo, tendo vivido, na ordem, sonho lúcido, paralisia do sono e falso despertar.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Tremembé


Tremembé era um lugar especial para AOP. Era seu refúgio, sua fonte de paz e de inspiração – Marcoré, por exemplo, seu livro mais importante, é praticamente todo ele ambientado na cidade.

A chácara era seu paraíso particular: metaforicamente um oásis, era um pequeno jardim botânico (literalmente), onde a convivência de AOP com os demais freqüentadores era puro deleite para todos.

Com seu amor e sua sensibilidade, AOP sublimou, em especial, a convivência com seus netos e outras crianças, moradoras ou não da pequena cidade do Vale do Paraíba. Não se cansava de ensinar sobre a natureza, em particular sobre as árvores e os pássaros, mas sem menosprezar as flores e seus insetos. A natureza era seu meio de comunhão com o Universo. O amor e o respeito que ele tinha por todos os seres vivos eram naturalmente absorvidos pelas crianças.

AOP tinha um prazer enorme em reunir na chácara dezenas de crianças da cidade que, juntamente com seus 4 netos, formavam uma platéia assídua de rostinhos intrigados aplaudindo febrilmente seus passes de mágica (um dia, certo neto desconfiaria e não se conformaria com a rã que virava pipoca, achando muita estranha a coincidência do cheiro que vinha da cozinha, apenas alguns momentos antes do truque).

Com sua brincadeira de fantasma, AOP arrancava gargalhadas das crianças, que devido a limitação de espaço, não eram tão numerosas quanto nos espetáculos de mágica. A brincadeira se consistia em uma variação do esconde-esconde, porém restrito a um quarto escuro. Depois de alguns minutos de expectativa, adentrava correndo uma espécie de fantasma, que procurava incansavelmente os escondidos, carregando sobre o corpo um lençol com dois furos nos olhos e, na mão, um rolo de jornal velho, com o qual fingia bater nos que encontrava dando sopa, o que tinha como resultado verdadeiras crises de riso por parte de todos - inclusive do fantasma - mas sobretudo da criança pega, que ria de cair no chão, de ficar com lágrimas nos olhos e com os músculos da barriga doendo.

E as histórias? Ah, as histórias... Centenas, inventadas na hora, sempre envolvendo bichos, que infelizmente não seriam registradas e se tornariam exclusivas dos netos, que as ouviram sentados no colo, inebriados, absorvidos, admirados.

As lições de xadrez no alpendre, estas eram dadas a apenas um neto de cada vez, também no colo. E se o pupilo movia o cavalo em diagonal, ou se saltava peças com o bispo ou com a rainha, não era por incompetência do professor avô que, apesar dos protestos, aceitava resignado o xeque-mate.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

AOP, ASP, fevereiro e novembro


5 de fevereiro

1913 – Nasce em Batatais AOP, autor de Contramão, Marcoré e Fio de Prumo.
1993 – AOP completa 80 anos
2013 – Centenário de AOP. Programação já começa a ser planejada por ASP e demais familiares.

16 de fevereiro

1973 – Nasce no Rio de Janeiro ASP
1993 – ASP completa 20 anos


15 de novembro

1993 – AOP não contará mais histórias nem jogará mais xadrez com ASP.
2013 – 20 anos sem AOP.


26 de novembro

2002 – ASP pega o AF 447 para um séjour de 4 anos na Cidade Luz, que se estenderia a um total de 7.
2010 – AOP é homenageado em Sessão Solene na Câmara Municipal de Tremembé. ASP e AOPJ, que estão no Rio, irão comparecer, mas como ainda não saíram de casa, possivelmente chegarão atrasados.


quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Na Bruma


Finco minha bandeira na bruma
desprezando a nitidez do real

Sôfrego, mamo na teta dos sonhos
a goles largos e ofegantes

Me lambuzo no mel da ilusão

Protejo-me do sol com cortinas e lentes

Colchões e colchas minhas muletas

Tenho a lua vermelha como amuleto

Minhas paixões são todas platônicas
e meus únicos filhos, poemas

Sou apenas uma mancha distorcida
e os vôos noturnos do meu espírito
representam a única realidade factível

Ipanema, circa 2000

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Ipanema


Sob um céu anil
sob um sol servil
sentado numa prancha
a espera de uma onda
de cor verde-esmeralda
água morna me circunda

À direta, a mais alta
e mais bela das Gáveas
Ao seu lado os Dois Irmãos,
unidos como todos gostariam;
À frente, com as Ilhas Cagarras
tão lindas eu flerto, deixando
enciumado o Arpoador, que
vejo espumando à esquerda
-- será que de raiva?

Olhando para trás visualizo
Ipanema há mil anos atrás
quando o mar de prédios
que em sonho sobreponho
cedia lugar a uma restinga

Interrompo meus sonhos
pois ela, tão esperada,
lentamente se aproxima
majestosa, soberana, linda

Quanto tempo teria
vagado esta onda
antes de estourar
na Praia de Ipanema?
Quais caminhos percorrera?
Que outros mares conhecera?

Não escondo o sorriso nos lábios
Os instantes que em breve viverei
me são raros e por isso preciosos

Remo para entrar na onda
logo estou em pé, surfando-a
sentindo toda sua energia
armazenada por dias e dias

De repente, ela me acaricia
com um abraço fraternal
e dentro de um tubo de cristal
me vejo em total harmonia

São poucos e inefáveis segundos
que em vão tento descrever
Poucos de fato, porém indeléveis
- nunca os irei esquecer
Poucos de fato, porém necessários
para se continuar a viver

Ipanema, 03/05/97

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Song to Bia

What happened tou you?
What’s it going to be?
I’m feeling so blue
‘cause you haven’t call me

Am I asking too much?

I would like to touch
Your hair and your skin
(It is my only dream)

Where are you, sweet voice?
Have I got a chance?
Or rather a choice?
Am I waiting in vain?

I just wanted to dance
With you in the silent
Darkness of my room

I wanna kiss you again
Under that red full moon

Don’t let me in pain
Under that cold rain

Please set free our souls
And tell us the truth
The energy that flows
Underneath our youth
Is clear and strong
But it won’t last so long

Ipanema circa 1998

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

vol de nuit


Ou Lua da Janela ii

Acordara de madrugada, com a presença, de certa forma intrusiva, da lua em seu quarto. Sua luz, projetada pela janela, recortava o chão sob a forma de um retângulo azulado e tornava nítidas as silhuetas da mobília.

Levantou-se preguiçosamente, abriu a porta que dava acesso à varanda e apoiou as duas mãos na grade de proteção. Admirava a lua cheia e a noite magníficas quando, subitamente, a grade cedeu.

Caindo no vazio, grita de terror e fecha os olhos para não ver o chão se aproximando. O que nunca ocorre. Quando isso torna-se evidente, a queda livre torna-se confortável. Em certo momento, o movimento muda de direção, de vertical, passa à horizontal.

Mais um sonho daqueles, mais um vôo noturno, nos quais as imagens são, por alguma razão desconhecida, mais nítidas que nos outros sonhos. Passa por cidades e por lugares de natureza estupenda, e a noite vira dia. Aproxima-se do chão e reconhece nas pessoas a fisionomia típica dos orientais. Elas no entanto estão em pânico. Percebe então que está sobrevoando uma cidade em pleno terremoto. O pesadelo tornara-se recorrente, porém não duraria muito tempo, posto que logo seus olhos se abririam para perceber o mesmo retângulo azulado de antes.

O sono tranquilo e sem sonhos vem de imediato. Ao acordar, lembra-se das duas fatias de pesadelo recheadas de um sonho muito agradável. Liga seu computador para iniciar o dia de trabalho e, ao ver as manchetes do jornal, um calafrio lhe percorre a coluna: “terremoto no Japão mata 200 nesta madrugada”.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

v.i. vii

ou "i.i. iii"

Havia acabado de acomodar seus quase 100 kg sobre a poltrona que de forma alguma fora concebida para pessoas do seu porte. Ainda tinha estampada na mente, como uma fotografia, o rosto da aeromoça que estava na porta da aeronave, de excepcional beleza. Pensou então em seus tempos de atriz de cinema na França, onde se exilara da sua Ucrânia natal, e lembrou-se da própria beleza 30 anos e 30 kg atrás. Em seguida viu a aeromoça descarregar, sobre um rapaz totalmente convencional, um olhar de desprezo tão intenso que ela se arrepiou inteira. Ao ver a reação do pobre diabo à sua frente, não diferente da sua, sentiu pena. Olhou-o em seus olhos, transmitindo sem perceber uma paz tangível que ele pareceu absorver como uma injeção na veia.

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Hoje alguém muito querido e especial para Marcoré faz 65 anos. Palavras são insuficientes para descrever seu amor, sua gratidão e sua admiração. Mas que ao menos fique o registro.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

v.i. vi

ou "i.i. ii"

Amaldiçou a própria beleza hollywoodiana, conjugada à profissão: não aguentava mais os sedutores (e sedutoras) de plantão e seus olhes convidativos, instigantes, sugestivos, etc... Todos fustigantes. A raiva e a frustração acumuladas durante uma década voando pela mesma empresa haviam, definitivamente, atingido os limites. A represa transbordava sobre aquele projeto de Don Juan, com seu olhar pseudo-cativante. Com seus olhos de um azul sem igual, ela o fuzilou com tudo. Ele sentiu a descarga na pele: seus pelos se eriçaram e um arrepio lhe percorreu a coluna, do cóxis até o pescoço, terminando com um ligeiro chacoalhar de ombros. Tudo fora percebido por ela, que se sentiu esvaziada, limpa, aliviada. Suas pernas vacilaram e se não fosse um colega de reflexos rápidos, talvez tivesse despencado escada abaixo. O pobre diabo de gota d'água nada notara, envolto que estava pelo olhar angelical de uma linda senhora ucraniana, de onde emanava algo inexplicavelmente tão forte a ponto de imediatamente anular o efeito do choque sentido no instante anterior.

sábado, 2 de outubro de 2010

v.i. v


ou "inescrituras' interaction"

Assim que vislumbrou a silhueta da aeromoça que recepcionava os passageiros, soube-a de uma beleza ímpar. Seu reflexo foi de procurar seus olhos, que descobriu azuis como a companhia, porém cinzas e frios como o dia. Havia naquele olhar algo que ia muito além da frieza e que desencadeou nele um choque de adrenalina, como se ele tivesse dropado uma onde de 3 metros numa ressaca no Pontão do Leblon. Teve medo. Cruzou por acaso o olhar de uma senhora muito gorda de cores e traços eslavos que, por algum motivo, também desconhecido, o apaziguou imediatamente. Atropelou, por não tê-la notado, a bela moça de cabelos castanhos e cacheados e olhos tristes que estava parada à sua frente e que se desculpou sem ter motivos para tanto.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

glasses turner


Ele tinha uma relação absolutamente contraditória com a astrologia. Sentia uma pontinha de inveja dos que adivinhavam o signo dos outros com menos de um minuto de conversa, porém ele mesmo tinha dificuldades de lembrar todos os signos do Zodíaco. Sabia os do seu irmão e da sua mãe, mas não sabia nem o do seu pai, nem o da sua última paixão. Todas as vezes em que lera seu mapa astral, ficara bastante impressionado, porém aqueles mapas nunca tiveram algum tipo de influência em sua vida. O determinismo contido implicitamente naqueles planos astrais o incomodava muito.




Ele a havia conhecido recentemente. Acabaram trocando figurinhas literárias e astrológicas: ele forneceu hora, dia e local de seu nascimento. Ela lhe enviou em seguida uma longa mensagem com conjunções entre sol, lua e planetas. Era um mapa astral. Fazia décadas, literalmente, que ele tinha lido seu mapa astral (influência de sua mãe), perdido e esquecido também há outro tanto tempo. Mais uma vez ele ficara impressionado. E novamente, incomodado com o determinismo.

Nesta última leitura surgiu a dúvida: quer dizer que aqueles que nascem no mesmo dia, hora e local seriam “gêmeos astrais”? Mas e o ambiente psico-social? Ele não pode deixar de ter influência no indivíduo, pensou ele. Lembrou das aulas de biologia que ele não havia matado para ir surfar (nada contra a biologia, era apenas fácil demais): genótipo, características genéticas no momento do nascimento; fenótipo, como estas características se manifestam em função do ambiente. Ou algo assim. Fez o paralelo entre a mensagem recebida, que continha uma descrição incrivelmente precisa das suas características em função da conjunção dos astros no momento do seu nascimento. Algumas destas características, verdadeiras no passado, porém, já não batiam. Ele havia mudado. Evoluído ou involuído, dependia do ponto de vista. E pensou “Ora, esta conjunção de astros no momento do meu nascimento é o meu 'genótipo astral' (ou melhor, astrotipo). Boa parte das características permaneceu, mas alguma coisa mudou. O meu fenótipo é diferente. E outras coisas poderão ainda mudar ainda. Tomara”. Pesquisou a etimologia de fenótipo. Do grego phaino, aparecer, brilhar. O termo fenótipo astral fazia sentido. Cunhou para si os conceitos de gêmeos astrais, astrotipo e fenótipo astral, e assim mitigou seu desconforto com o determinismo intrínseco aos mapas astrais.

Continuou, porém, negligenciando o que os astros lhe diziam.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

v.i. iv

ou "le talon ii" (ou ainda "a benção")

Estava novamente no saguão do aeroporto de Viracopos em Campinas, esperando o embarque para o Rio. Definitivamente aquele local o inspirava. Mais pela espera ociosa do que pelo ambiente em si. Sua técnica para dormir sentado não funcionara desta vez. Lembrou-se então da bela jovem de salto muito alto e muito fino que vira algumas semanas antes naquele mesmo lugar. Se deu conta então que seu sentimento em relação aos sapatos daquele tipo eram contraditórios. Por um lado, os achava bonitos e apreciava bastante o charme por eles conferido às suas portadoras; por outro, os via como uma barreira física, já que eles tornavam pontos estrategicamente vulneráveis, tais como nuca, orelhas e boca, distantes da sua. Às vezes, mais que distantes, fora de alcance mesmo. Além disso, via naqueles sapatos uma arma. Isto desde o dia em que imaginou uma linda mulher com um salto absurdamente fino esticando a perna em sua direção e empurrando o calcanhar para fora, como uma benção (bem naquele lugar). Por que cargas d’água os capoeiristas chamavam esse chute de benção, ele não sabia. Depois de imaginar a cena, percebeu toda ironia contida no nome daquele golpe.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Viracopos' inspiration III


A turbulência fora excepcionalmente forte. Ele, porém, dormia profundamente, sonhando com cilindros verde-esmeralda de onde saía seco sobre sua prancha. O chacoalhar do avião entrara em seus sonhos, pois ele agora chacoalhava debaixo d’água, após um longo e cristalino tubo sem saída. Acordou buscando ar, com os braços protegendo o rosto da própria prancha. O barulho das turbinas e o assento apertado trouxeram-no rapidamente de volta à realidade. O suco de laranja derramado na mesa do passageiro ao lado e, sobretudo, sua cara de assustado, indicavam a turbulência e, assim, ele pode entender melhor a súbita transformação do seu sonho.

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Hoje alguém muito querido e especial para Marcoré faz 61 anos. Palavras são insuficientes para descrever seu amor, sua gratidão e sua admiração. Mas que ao menos fique o registro.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Conselho de Classe


Sábado à noite. Deixo o Teatro Gláucio Gil, em Copacabana, onde vira uma excelente peça: Devassa, adaptação de A Caixa de Pandora, do alemão Frank Wedekind. Despeço-me da Marina, cujas performances admiro há muitos anos. Ligo para Túlio. Programa fechado em menos de 30 segundos: Jobi. 10 minutos depois, no alto da Timóteo da Costa, aguardo no carro, com certa impaciência, a chegada do meu amigo.

Para início de conversa, ele me recomenda ler sua última crônica na Fluir. Protesto dizendo que não sabia que ele estava escrevendo para a revista. Já faz um ano, meu camarada, responde o jornalista-surfista (ou o inverso). Justifico-me dizendo que se ele não houvesse me contado, talvez eu ficasse outro ano sem saber, já que há tempos não comprava a revista.



Descemos a ladeira. Inevitável a volta em torno do quarteirão para achar vaga sem um flanelinha para perturbar. Encontramos uma vaga no final da Dias Ferreira. Vamos aproveitar para comprar a revista no caminho, sugeriu Túlio ao nos aproximarmos da farmácia que outrora fora a Piauí, em frente à qual fica a banca de jornais pioneira na cidade a ficar aberta 24h. Melhor na volta, respondo. Prefiro não ter que ficar segurando a revista em pé, disse, ranheta, prevendo a demora em conseguir uma mesa.

Em um dado momento, a conversa descambou para uma certa opinião feminina sobre barba masculina. Túlio, porém, mudou de assunto com uma pérola da sua filha Ana: “Papai, por que você diz que vai fazer a barba? O certo é desfazer a barba.” Claro. Lógico. A Ana tem toda a razão. Nada melhor do que a lógica de uma criança inteligente de 6 anos para por fim a conversas insistentes. A noite durou mais do que o previsto e o plano de comprarmos a revista ficou comprometido.

Três dias depois, à espera da barca que faz a ligação entre a praia de São Francisco em Niterói e o Centro do Rio, aproveito os mais de 30 minutos ociosos para comprar a revista e ler o artigo. Procuro no índice. Surfe Deluxe. O blog virara crônica na Fluir! Uma leve onda de orgulho pelo meu amigo me percorre.

Logo no início do texto, uma bela recordação de momentos espetaculares e inesquecíveis que vivemos há 20 anos ao surfarmos sozinhos, ainda adolescentes, num dia de aula sem aulas (o tão sonhado conselho de classe), o meio da barra em condições perfeitas. A exatidão e, sobretudo, a sensibilidade da lembrança trouxeram-me uma forte nostalgia que, somada à homenagem e ao visual da praia de São Francisco sob uma luz ímpar, deixaram-me com os olhos cheios d’água -por sinal, salgada como as muitas ondas que surfaremos juntos. Valeu goodfella, aquele abraço!

sábado, 14 de agosto de 2010

in the air


Ele tinha crises pontuais: sentia tanto amor, por tudo e por todos, que visualizava o sentimento extravasando pelos seus poros. Felizmente, estas crises eram raras e duravam poucos segundos.

Também passou a desenvolver técnicas especiais. Sua preferida era a cruzar as pernas e de apoiar o cotovelo no braço das cadeiras dos aeroportos (que frequentava com certa assiduidade) , apoiando em seguida o rosto no punho fechado. De óculos escuros, conseguia dormir a ponto de sonhar. Até que um belo dia perdeu um vôo, com o cartão de embarque no bolso da camisa. Não desistiu. Mas passou usar alarme antes de dormir.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

BG


Rodeado de amigos. Distante, portanto, de quaisquer perigos. Enquanto a vida vai embora, cerveja dentro, conversa fora. De uma mesa do Hipódromo vê-se a lua da alta madrugada. “Diante do universo somos átomo, um grão de areia, um quase nada”, diz alguém. Outro brinda: “Aos átomos etílicos!”. Surge entre nós um e outro verso, e de poesia nos pretendemos ricos.

Ipanema, circa 1998

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Le talon


Ele estava sentado em um café, esperando seu vôo de volta para o Rio quando ela passou, com um sapato de salto tão alto e tão fino que tornava evidentes as razões da dificuldade mal disfarçada que ela tinha em andar. Esta habilidade certamente seria desenvolvida com o passar dos anos - que no seu caso ainda eram poucos. Boa parte da autoconfiança daquela jovem, estampada em seu belo sorriso, apoiava-se, naquele momento, literalmente em seu sapato. Ele não deixou de lhe dar razão e, com esta simples observação, passou a entender um pouquinho melhor algumas idiossincrasias femininas.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Ego e Deus


A maior frustração de Ego foi descobrir que não era Deus. Sentiu-se perdido ao ter plena consciência de que ele era apenas ele mesmo. Foi um baque sério na sua autoconfiança, que até então era tanta que resvalava a arrogância e flertava com uma vaidade escabrosa. Nada como os golpes da vida para baixar a bola dos Deuses de plantão.

O egocentrismo, no entanto, ficaria como uma cicatriz em sua pele. Duas décadas mais tarde, Ego veria outro Deus, este vindo de um pouco mais ao sul do Equador que ele, baixar literalmente sua bolinha. A escovada que sua equipe levou na África do Sul foi um choque de realidade. Daqueles que fazem com que alguns “Deuses” percebam que são de fato humanos.

Foi fácil para Ego entender as razões do prazer intenso e inefável que sentira com a humilhação do técnico argentino. A hostilidade que ele sentia por Maradona tinha como justificativa a arrogância que o craque fanfarrão fazia questão de ostentar publicamente na mídia. Ego, porém, tinha plena consciência de que no fundo o incômodo existia porque Maradona o remetia à sua própria arrogância e ao seu próprio egocentrismo.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Encontros e desencontros
Na madrugada de domingo
Sexos opostos se atraem
Mas há uma barreira
A ser transposta
Um paradão de gelo
A ser escalado
Não me sinto alpinista
Deixo de lado cordas
Pinos e mosquetões
E recorro à caneta
Vejo, do topo da colina
A silhueta feminina
Bela e intocável
Vontade e receio se mesclam
Escrevo minha mensagem
Que como uma folha seca
Desce suavemente
Planando ao sabor do vento
Fico de cima observando
Mas não a espero chegar
Talvez a atração
Seja numa só direção
Mas jamais saberei
Não quero, não importa
Me basta a inspiração
E do outro lado da porta
A madrugada do primeiro
Dia de agosto no Rio
Me receberá abertamente
Com um sorriso quente
Um abraço frio
E a lua cheia de brinde

Bukowski, 01/08/1999

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Lua da Janela


Madrugada em Ipanema. Ele entra em seu quarto. Luz apagada. Janela aberta. Ao ver uma luz forte e azulada no chão, ele pensa consigo: “É ela!” Acode à janela verificar. De fato era. Cheia. A pino.

O seguinte lhe vem à cabeça e é passado imediatamente para o papel:


Uma réstia de luz azulada

vem de uma fresta

da janela do meu quarto

que resta aberta


Uma fresta da lua

no resto da noite


Uma fresta da madrugada no papel.


Ele recorre ao dicionário. Procura pela palavra fresta, para se certificar do sentido empregado. Satisfaz-se. E encontra também o seguinte:

3. Fenda, greta, frincha, fisga. “contemplei-a do terraço, através da fresta do batente, e meu propósito de paz se acentuou” (Antônio Olavo Pereira, Marcoré, p. 173).

Até então, ele não sabia que o livro do seu avô havia sido citado no Aurélio. Milhares e milhares de verbetes, e ele cai justamente sobre um que citava seu avô, que sempre o aconselhava de ler uma página de dicionário por dia. Ele, no entanto, indolente, raramente o abria.

Por este motivo, e também por ter escrito aquelas linhas de sopetão, o que lhe é raro, ele suspeitara, na época do ocorrido, de que seu avô as haveria soprado em seu pensamento. Hoje, esta suspeita foi diluída pelos anos passados no país das luzes.

domingo, 27 de junho de 2010

Ipanema e Leblon


Era obcecado não apenas pelo universo, mas também pelo oceano que, apesar de finito, não deixa de ter seus recantos indecifráveis e inacessíveis. Oceano que, perto da plataforma continental, torna-se mar. Mar que trouxe sal à sua vida.

Ipanema.

Natação no clube desde moleque. À medida que a criança cresce, o mar torna-se um amigo cada vez menos reticente e vai abrindo aos poucos as portas da sua casa. Quanto mais ousada a criança, mais intimidade ela ganha.

8 anos. Uma primeira experiência solitária na arrebentação (pais muito relaxados, confiantes ou negligentes - felizmente) com prancha de isopor, e um primeiro caldo que faria chorar qualquer criança. Algumas ficariam traumatizadas, mas para outras, o prazer da primeira onda surfada seria tão fantástico que anularia a dor física, o medo e as lágrimas causadas pela asfixia do caldo e pagaria a pena do bis repetita.

11 anos. Não há asfixia. Não há dor. Mas o medo é triplicado, como o tamanho das ondas e a força do mar. Estar no lugar errado no momento errado, nestas circunstâncias, poderia significar um caldo mais do que apenas traumático. A criança começa a ter, de forma muito superficial, noção da fugacidade da sua vida. Ao mesmo tempo, fortalece sua relação com o mar. Troca, aos poucos, o medo pelo respeito - o que, por sua vez, abre portas de corredores cada vez mais longos. Quando a criança percebe, já está na sala de estar – com um misto de ousadia, respeito e admiração.

Adolescência. Tendo o privilégio de morar perto do seu amigo mar, e vai visitá-lo todo dia, faça chuva ou faça sol. A escola não é problema. Ao contrário, pois nela ele conhece outras ex-crianças com pais relaxados-confiantes-negligentes, e que tiveram mais fissura do que medo de repetir a experiência aterrorizante.

Troca de experiências com os colegas de turma. Novas praias. Canais. Pedras. Ressacas. Aventuras cada vez mais arriscadas. O adolescente é imortal e não percebe que às vezes o risco é maior do que suas competências, e que pode ser até fatal. Tem sorte. Muita. Santo forte.

Leblon.

17 anos. Ressaca no Pontão. A maré muito alta impossibilita o mergulho pelo píer (técnica aprendida com um colega de escola, que depois se tornaria um irmão. Companheiro não só de ondas, mas também de letras. A descoberta desta segunda afinidade, tão marcante quanto à primeira, fora regada por chope gelado e carne seca acebolada com farofa, azeite e pimenta no Jobi, alguns anos depois, mas a apenas alguns poucos quarteirões de distância)

O jovem pensa estar preparado física, psicológica e tecnicamente para, sozinho, ir visitar o mar em um dos seus cômodos mais recatados. Ondas perfeitas. Pouquíssimos surfistas na arrebentação. Não havia confronto nem enfrentamento. Tratava-se apenas de uma visita – ou melhor, uma tentativa.

Com o coração a mil, ele não percebe o banho que alguns incautos expectadores levam da onda que bate na calçada. A vontade de pegar as ondas, alimentada pela vaidade despertada pela platéia que lota o calçadão e o mirante para olhar a ressaca, são maiores que o medo e o bom senso. No instante seguinte, aproveita a calmaria (a onda que molhou boa parte dos incautos observadores era a última da série) e desce rapidamente as escadas para entrar no refluxo da mesma onda e aproveitar sua força para percorrer os mais de 150 metros que o separavam do ponto onde as ondas perfeitas estavam quebrando.

Entre o concreto das escadas e as pedras do píer, mergulha com sua prancha no mar. A profundidade no local do mergulho é de poucos centímetros e o mergulho tem que ser preciso para não que a quilha da prancha não quebre. A técnica de seguir o refluxo pelo canal ajuda. Rapidamente ele está na altura do fim do píer, na metade do caminho, mas ainda muito longe do seu objetivo: ultrapassar a zona de impacto, onde as ondas de quase 3 metros quebravam com uma força, frequência e estrondo assustadores.

No estreito canal formado ao longo do píer, algumas pedras são aparentes. O adolescente rema furiosamente na direção do mar aberto. Após alguns minutos sem conseguir avançar percebe que, apesar do seu bom preparo físico (sessões quase diárias de surfe e de natação, corrida na areia fofa, etc.), ele não tem força para cruzar a arrebentação. A sensação de alívio trazida por essa simples constatação é maior do que a frustração de não poder surfar as ondas perfeitas. Alguns anos mais tarde, o adolescente se daria conta que a barra estava literalmente muito pesada e, que ele estava sem o equipamento necessário. E o mar, sábio amigo, fechara as portas com o simples objetivo de preservar a amizade.

domingo, 20 de junho de 2010

O nada por fronteira


O infinito sempre o obcecou. Não os conceitos matemáticos, tais como as dízimas ou os limites tendendo ao infinito. Estes não lhe causam problemas. Mas o universo e suas fronteiras, estes sim, vêm lhe angustiando. Sua mente não tem o poder de abstração suficiente para considerar a existência ou a inexistência de limites ao espaço sideral. Qualquer tentativa de imaginar uma eventual circunscrição do universo lhe traz um mal estar físico esquisito, difícil de descrever, como um fluido gelado percorrendo de alto a baixo o interior da coluna, somado a uma sensação de vazio no estômago, como se houvesse sido engolido o próprio universo, cuja ausência de limites vem sendo traduzida, de forma consciente ou não, em seu alucinado comportamento.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Sobre os Cariocas e a Lua


Reza a lenda que no Rio de Janeiro, as pessoas não trabalham nem estudam, vivem na praia e adoram a lua. Dizem ainda que um destes cariocas, em um destes dias (de aula, claro), depois de uma sessão de surfe em Ipanema, que se estendera até depois do sol se pôr atrás dos Dois Irmãos, viu, aos 13 anos, e pela primeira vez em sua vida, a lua nascer cheia e vermelha,do mar, entre o Arpoador e a ilha do farol.

Um misterioso clarão vermelho antecedera o espetáculo e chamara sua atenção. Seria um incêndio em algum barco? Logo depois, a lua cheia, nascendo vermelha de um horizonte sem nebulosidade alguma, totalmente límpido, esclareceu o mistério.


Desde então, dizem, o garoto entrou em estado de choque admirativo profundo e eterno.


Passou então a procurar, obsessivamente, a repetição daquela cena tatuada em sua mente, que ele sempre tentou descrever, mas que nunca conseguiu fazê-lo com justeza.


Como bom carioca, não trabalha e passa o dia inteiro na praia. De tanto observar a lua, começou a entender um pouco seus mecanismos, sem nunca ter estudado nada a respeito, pois para os cariocas estudar na praia é um sacrilégio ainda maior do que apenas estudar.


A primeira coisa que ele descobriu com suas observações foi que, na medida em que a lua vai subindo, ela perde sua tonalidade de vermelho, passando pelo laranja e pelo amarelo antes de chegar ao branco.


Depois, percebeu também que a lua nasce sempre cerca de 50 minutos mais tarde em relação ao dia anterior, e que nos dias de lua cheia, sempre em torno das 18 horas, sem horário de verão (detalhe importante, pois fora no verão que ele vira a primeira e fatídica lua vermelha).


Reza a lenda ainda que este carioca teria se desvirtuado e passado quase dois meses em São Paulo. Dizem que ficou um pouco frustrado, quando em um dia de agosto de 2006, depois de 5 dias sem nuvens, ele viu, logo no começo da tarde, surgirem no céu as nuvens que o impediriam de aproveitar a vista privilegiada da Serra da Canteira para ver a lua nascer cheia e vermelha do horizonte.


Ela nasceu na direçao e no horário esperados, mas como ele previra, a nebulosidade impediu a lua de se mostrar vermelha. Antes de se descortinar, um clarão por trás das nuvens anunciara, por alguns minutos, sua vinda. E quando, por de trás das mesmas nuvens, por volta das 18h30, ela finalmente mostrou seu sorriso, já estava amarelada. Pouco depois, ficou branca de vez. O espetáculo foi bonito mesmo assim e atenuou um pouco sua frustração de ter perdido uma lua vermelha



Reza a lenda que nos dias de lua cheia este carioca pode ser visto perambulando no final de tarde em Ipanema com um olhar fixo no horizonte.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O nada por horizonte: alter Ado


A dor de cabeça mortifica. A língua e os lábios, de tão secos, estão colados. Levanto com dificuldade. Procuro o celular para ver a hora: três da tarde, e sete chamadas não atendidas. As seis primeiras passaram em vão. A última me acordou. A água fria nos olhos vermelhos ajuda a fazer cabeça voltar a funcionar.


As cenas da noite anterior surgem naturalmente. Algumas cervejas na sala com Ado e Malu. Papo interessantíssimo. "A movimentação sem significado, tendo o nada por horizonte, é o clima da falta de fundamento." Truffaut. Auster. Seleção musical incrível apesar das interrupções. Depois Braseiro com Roberta e Guta: Love Hurts e Drama Queen tatuados no peito. Tony chega. Com o Braseiro fechado, Jobi é o desdobramento natural. Quantidades industriais de chope.


O enjôo me traz de volta à realidade. A perspectiva de um mergulho no mar de Ipanema, seguido de uma água de côco gelada, me permite continuar a viver. Drama King.


Anseio que a água esteja limpa e gelada. No caminho, um senhor me para e pergunta como vão meus pais. Forço um sorriso na medida do possível, tendo por limite o crânio querendo rachar. Não me recordo nem da sua fisionomia, nem do seu nome. Zero.


O mar está limpo e agitado. Furo a arrebentação por baixo dos rolos de espuma que vêm em sequência regular. Passo a última onda antes que estoure. Paro além da arrebentação para recuperar o fôlego.


Uma onda surge, o sol a torna translúcida. Nado com força até ser levado pela onda, que logo me envolve em um tubo de cristal. Encho o peito de ar antes do caldo. 15 segundos relaxados debaixo d’água antes de voltar à tona, graças ao ar preso nos pulmões. Reflexo dos anos e anos de surfe na mesma praia.


Uma ressaca remedia a outra. A água lava o cansaço. Seco ao sol. Compro um côco na barraca onde o Ado é freguês. Obrigado seu Ado, me diz o barraqueiro. Estranho, mas deixo passar. Sigo meu rumo de volta para casa.


Na portaria do edifício, o porteiro me entrega um envelope. Chegou agora para o Senhor. Antes de colocar no bolso, vejo o destinatário: Ado Benvenuto. Digo que entregarei o envelope ao Sr. Ado assim que ele chegar. O porteiro me lança um olhar estranho. Não ligo.


Abro a porta, sôfrego, para responder ao telefone que toca insistentemente. Alô. Minha voz sai com esforço. Ado, meu filho, tudo bem? Desligo no mesmo instante. O telefone toca novamente, mas absorto em meus pensamentos, não atendo. Estranho a sequência de confusões. Eu me chamo Marcoré, e não Ado. E as diferenças físicas entre nós são gritantes. Ligo para o celular do Ado. A voz informa que o número não existe. Tento o celular de Brasília. Idem. Estranho, muito estranho.


Resolvo fazer um teste. Ligo para Malu, que conhecera na véspera. Ela atende dizendo de cara Ado! Que bom que você ligou, estava pensando em você! Hesito um instante, mas resolvo levar o teste adiante, propondo um encontro. Marcamos um café na Livraria da Travessa. Em meia hora.


Os 30 minutos levam uma eternidade. A ansiedade me paralisa. Cumprimentamo-nos com um abraço. Dois expressos por favor, comandamos ao garçom. Depois de alguns segundos de silêncio, ela diz “Ado, preciso falar contigo sobre um assunto sério”. Peço licença para ir ao toalete, e saio correndo, com o coração a mil na direção da casa do Ado, onde estava hospedado. Subo os 5 andares, jogo minhas coisas na mochila, desço e pego um táxi. Icaraí, Niterói, por favor, instruo o motorista. Ligo para meu pai. Quero avisar que estou a caminho da sua casa. Alô. Pai? Gostaria de falar com quem? Pai, pai, sou eu! Ele desliga, para meu desespero.


Ao chegar a sua casa, o porteiro me barra: pois não? Resolvo não discutir. Vou para a casa do Marcoré. Não tem ninguém em casa. Eu sei, respondo-lhe mostrando o chaveiro, estou com a chave do apartamento, veja. Ele a deixou comigo e ficou de avisar na portaria que eu viria. Senhor, não há recado algum, e infelizmente não posso permitir que o senhor suba sem autorização.


Insisto, mas não há nada a fazer. A solução é esperar no hall de entrada do edifício. Adormeço no sofá, e acordo com meu pai me sacudindo levemente pelo braço, perguntando o que eu fazia dormindo lá.


Estou sem chave, minto, e acabei dormindo. Levanto e o sigo até o elevador. Seus lábios se movem, mas não o escuto. As cenas do sonho desfilam em minha mente. Nunca antes eu lembrara de um sonho com tantos detalhes, com tanta nitidez. Recordação integral. Não fosse o absurdo do sonho, sua total falta de fundamento, eu o juraria realidade.


O elevador chega. Num reflexo, penso em pegar a chave, mas interrompo o movimento a tempo de não revelar minha mentira. Deixo a mão no bolso. Junto à chave, sinto um volume diferente e, ao retirá-lo do bolso, reconheço o enveloppe que me fora entregue pelo porteiro do Ado. Meu pai se despede de mim com um “boa noite” polido. A porta do elevador se fecha, e um arrepio percorre meu corpo em ondas convulsivas.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Bye bye Paris


Estes meus últimos dias em Paris coincidiram com o XII Festival Jangada de Cinema. Consegui me organizar para ir ver alguns documentários sobre música ou sobre músicos brasileiros, inclusive alguns na véspera da minha partida, depois de 7 anos e meio na Cidade Luz.

Na saída de Beyond Ipanema, encontrei Pedro D-Lita, que eu conhecera por intermédio do Domenico Lancellotti, amigo em comum de quem gosto demais e cujo talento como artista (baterista, compositor, cantor, gritador, pintor) admiro muito.


Pedro ia tocar na festa de fechamento do festival, em alguns dias, com mais três outros DJs , todos também meus amigos: Bertrand Doussain, francês que eu conhecera no Rio pelo seu trabalho como flautista no Farofa Carioca, mas que fiquei conhecendo melhor em Paris; Chicote, de Olinda, idealizador do Rio Maracatu, radicado no Rio mas de passagem por Paris, e que eu conhecia já do Rio, da mesma época do Bertrand; e o Stéphane Nino, que há alguns anos integrara o programa Décalage Horaire, transmitido pela rádio livre Frequence Paris Pluriel (FM 106,3), ou pela internet, aos domingos, de meio dia às duas da tarde, horário de Paris.


Abre parênteses: O programa, que já tem 30 anos, é realizado por outro amigo, Paul Ghanem, e dedicado exclusivamente à música brasileira, da qual Paul é um grande conhecedor, colecionador e admirador. Além de música ao vivo e entrevistas com artistas brasileiros radicados ou de passagem pela França, o programa passa constantemente músicas e artistas que eu não conhecia. Há alguns anos, o programa passou a contar com uma crônica musical de cerca de 20 minutos, feita pelo Stheph, com quem também aprendi muito sobre música brasileira em solo francês. Fecha parênteses.


Pedro então me convidou para dar uma canja na festa, que seria no dia 19, na véspera da minha viagem. Apesar do meu avião para o Rio levantar vôo algumas horas apenas após o final da festa, agarrei na hora a oportunidade, com um misto de felicidade e gratidão, pois tocar com quatro amigos, no Alimentation Générale, na festa de fechamento daquele festival, era um convite irrecusável, ainda mais na fissura que eu estava, pois minha atividade de DJ está cada vez mais bissexta.


Aceito o convite, comentei com Pedro que eu tinha notado que Freestyle Love, do Stéreo Maracanã, grupo formado por ele, Maurício Pacheco, entre outros, fazia parte da trilha sonora do filme (Maurício havia feito parte do Mulheres Que Dizem Sim, com Domenico, Pedro Sá e Palito/ Bartolo). Comentei também que eu ira para o Rio em breve e que chegaria a tempo de ir a exposição de fotos de sua mãe, Lita Cerqueira, no espaço Oi Futuro do Rio.


No festival, vi ainda três outros documentários maravilhosos, com destaque para Dzi Croquettes, cuja existência até então eu desconhecia totalmente. Ao contar a história da trupe, repleta de alegrias e sucessos, sem esconder as tragédias e os fracassos, os diretores Tatiana Issa e Rafael Alvarez colocaram tanta emoção e sensibilidade no documentário que meus olhos pareciam uma cachoeira. Também me emocionei e aprendi muito com Loki, Arnaldo Baptista, de Paulo Henrique Fontenelle, que assisti no mesmo dia.


Tamanha emoção que no dia seguinte tratei de acelerar o fechamento das malas para poder ver o filme que iria encerrar os festival, Os filhos de João Gilberto: o incrível mundo dos Novos Baianos, de Henrique Dantas. Fui com Thiago e Arnab, dois grande amigos, e aproveitei para me despedir deles na saída com uma cerveja. Emendei com outra despedida, jantar com Dominique, sem dúvida o amigo mais presente, e acabei chegando na festa pouco depois da meia-noite. Dois outros amigos queridos estavam presentes em clima de despedida: Venance, João e Felipe.


Curti um pouco a festa com os amigos e pouco depois de uma hora da matina fui para a cabine do DJ fazer um pouco de pressão para ver se conseguia tocar algumas músicas, já que a festa terminaria às 2h. Tava difícil tirar o Steph das carrapetas, até que o Said, o gerente do local, avisou que a música teria que parar à 1:40h, para decepção de todos, e para meu desespero, pois já era 1h30. Bom, 10 minutos é melhor do que nada, e tratei de colocar Freestyle love, em homenagem ao Pedro e ao filme Beyond Ipanema, e depois Besta é Tu, em homenagem à família Cidade Gomes e ao documentário sobre os Novos Baianos. E sobretudo porque estas músicas já faziam parte do meu repertório porque são boas para c.... e sempre fazem todo mundo dançar.


Aproveitei as poucas horas entre a festa e o vôo para terminar de arrumar minhas coisas e deixar o apartamento limpo para o próximo ocupante. Cheguei virado no aeroporto e dormi durante quase todo o trajeto.

A festa foi na terça 18/05. O vôo partiu de Paris na manhã do dia seguinte, e chegou ao Rio na própria quarta de noite. Na manhã do sábado seguinte, um pouco antes de pegar a estrada para Itaipava, passeava a pé pelo Leblon a procura de um lugar para sentar e tomar um expresso. Entro em um café que ainda não conhecia, com mesas na calçada, numa rua transversal à praia. A varanda estava lotada. Sentamos numa mesa na parte de dentro. Fiquei de frente para a parede, onde reparei duas belas fotos em preto e branco do Rio, dos lugares onde morei até ir para Paris: Lagoa e Ipanema. E ao prestar mais atenção, vi que as fotos foram tiradas pela mãe do Pedro, Lita Cerqueira, cuja exposição faz parte dos meus planos da semana.


Tamanha coincidência teve que ser postada imediatamente no facebook. Pedro e Marcinha responderam na hora, e ela me sugeriu fazer uma crônica, que por sinal acaba de terminar.

sábado, 15 de maio de 2010

Austero?

"Mais tarde, talvez venha a fazer outra coisa. Quando não serei mais poeta. Veja você, mais dia menos dia, as palavras me faltarão. Toda pessoa possui, dentro de si, uma quantidade limitada de palavras. Onde estarei então? Creio que gostaria de ser bombeiro. E depois disso, médico. Por último, equilibrista. Quando for bem velho e que terei finalmente aprendido a andar como todos. Dançarei então sobre a corda bamba, e as pessoas ficarão boquiabertas. Até mesmo as criancinhas. É disso que eu gostaria. De dançar sobre a corda bamba até que chegue a minha hora."

Tradução livre do francês de um trecho do Monólogo de Peter Stillman, diante de Quinn, na Cidade de Vidro, de Paul Auster.

terça-feira, 11 de maio de 2010

La Mer et la Mère

O pedido de uma leitora, que festejou seu dia no domingo passado, me fez escrever antes do previsto. Trata-se de uma pessoa especial, e não apenas por ser minha única leitora. Não, não, há que se fazer justiça: Tatá, João, Zé também lêem o Contramão, não movidos pelo sentimento maternal, que tem tudo menos neutralidade (tenho certeza de que a mãe do Olavo de Carvalho não perdia uma daquelas suas colunas surreais no Globo). Mas mamãe mandou um email na segunda-feira perguntando se tinha crônica, e eu tinha publicado uma na sexta anterior!!!! Com isso, ela já fez por merecer uma, feita especialmente para ela. Como estou de mudança internacional, faltam tempo, paciência e estado de espírito para escrever, mas há alguns temas que gostaria de desenvolver em breve: a beleza e as infinitas possibilidades do xadrez; os passeios e eventos nos subterrâneos e nos telhados de Paris; e o projeto La Mer em SoliDaire e a travessia do Atlântico realizada pelo veleiro Podorange, tripulado por uma amiga e dois cadeirantes, que tive o prazer de conhecer por seu intermédio (fiquei sabendo que o termo está na moda no Brasil por causa da novela, mas sinceramente, prefiro deficiente, não apenas pelo som, mas será que o fato de se usar um eufemismo já não revela um enorme preconceito?). Pois é amigos, estas foram as cenas dos próximos capítulos, a serem escritos um dia, provavelmente já em Terrae Brasilis, se nosso amigo vulcão islandês deixar.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

The Yoni


O problema (ou a solução) de trabalhar ouvindo FIP ou Nova é que, por mais concentrado que esteja, volta e meia sou obrigado a interromper meus afazeres para pesquisar em seus websites que música ou versão estão passando, já que raramente os autores e os nomes das músicas são citados pelo locutor. Por curiosidade, atualizo constantemente os sites para descobrir, ou confirmar, em suas playlists, as músicas e, sobretudo, os autores, que me interessaram. Hoje de tarde, uma música me chamou a atenção logo que entrou. Docemente se insinou em minha mente e já em sua metade alguma coisa me prendeu. Não sei exatamente se a melodia, os arranjos ou a voz do cantor, ou tudo junto, que me lembraram, sem que eu me desse conta naquele momento, algo como Nick Cave ou Leonard Cohen. Talvez por isso o interesse. Fui ao website da FIP e achei autor e música: Budam, The Yoni, do álbum Stories of Devils, Angels, Lovers and Murderers. Em seguida, ao invés de anotar o nome em meu Moleskine, fui direto ao Deezer para escutá-la novamente. Aproveitei e escutei o disco todo, mas confesso que gostei muito mais desta música em particular. Coloquei todo o álbum no iphone para ouvi-lo com calma depois, pois o autor merecia ser descoberto. A afinidade com a música veio antes mesmo de eu começar a entender a letra, várias horas mais tarde. Talvez eu já tivesse, inconscientemente, prestado atenção na letra, o que explicaria facilmente o interesse específico por esta músca, mas tenho quase certeza de que a atenção inicial surgiu por razões estritamente musicais. A letra ficou clara posteriormente, quando voltava de bicicleta para casa, após um ótimo jantar em comemoração aos 50 anos do Marcelo, no alto do Centre Pompidou. Pedalando por Paris de madrugada, tive finalmente a oportunidade de me concentrar na música. Gostei tanto da imagem que, ao chegar em casa, apesar do avançado da hora, não tive outra saída a não ser escutar a música uma dezena de vezes para transcrever as palavras, já que não consegui achar a letra na net, apesar da busca insistente. Se a letra fora publicada antes ou não, pouco importa, pois tive grande prazer em transcrevê-la. Restam algumas dúvidas e, as correções são bem-vindas. Sugiro a experiência de escutar primeiro a música sem prestar muita atenção na letra, pois a música em si já é uma delícia. Quando a mensagem chega, o prazer se pontecializa. Para ouvir a música, basta ir ao Deezer por exemplo. No Myspace do artista, ela infelizmente não está disponível. Para os apressados, a letra segue abaixo.

The Yoni (Budam)

There is a magical place
Surrounded by mystical haze
Its history’s untold
Its secret’s unknown
But ever man knows where it is
It’s hidden deep in the wood
The dark and feminine wood
It’s dangerous
For all of us
But you should go there, yes you should
It is a kind made by the gods
Their finest and best work of art
‘Cause it’s deep, and it’s warm
And it’s soft, and it’s moist
It’s the Yoni
When you come to this beautiful place
Remember to treat it with grace
Undress it, caress it
Make sure that the fire is lean
For this cave it has a keeper
That might not let you go deeper
So use your lips
And use you your tongue
To persuade the keeper to come
And when it’s wet just like the rain
And you gladly going insane, and you say
This cave was made by the gods
Their finest and best work of art
‘Cause it is deep
And it’s warm, and it’s soft
And it’s wet, it’s the Yoni
Some say its fruits are forbidden
Someone (tent?), desperately hidden
And it’s fruits of life
And fruits of joy…
I wanna kiss it, touch it, and lick it
To make sure that the fire is lean
I’ll make you (mone?)
I’ll make you come…
And when the fire is burning with love
And the angels are singing above
And when it’s wet just like the rain
And I’m gladly going insane
I scream
This cave was made by the gods
Their finest and best work of art
‘Cause it is deep, and it’s warm,
And it’s soft, and it’s wet
And it’s feminine, and it’s beautiful
And it’s life, and it’s love
And it’s you

domingo, 25 de abril de 2010

Olinda, Carnaval, 1997

Até passar meu primeiro carnaval em Olinda, nunca tinha visto nada igual em termos de diversidade e qualidade, totalmente diferente da monotonia do carnaval do Rio, sobretudo naquela época. Naquele primeiro carnaval em 1997, tive o privilégio de ver, no coração daquela linda cidade histórica de arquitetura barroca e de paralelepípedos, shows de Eddie, Frankie Jr., Chão e Chinelo, entre outros. Estes shows aconteceram fora das ruas, porém com livre acesso, em um ambiente que parecia mais uma gravação de um acústico da MTV do que um carnaval de rua.

Também fui com Ana Paula e Lulu à Cidade Tabajara ver o encontro dos maracatus rurais, num teatro de arena lindo, recentemente inaugurado, com Mestre Salustiano como mestre de cerimônia. Em Olinda me esbaldei de beijar na boca, de dançar e de cantar maracatu, frevo, côco e ciranda. Também passei uma tarde inteira dançando xote e baião numa ladeira de paralelepípedo bastante íngreme, o que revela uma coragem da qual só os bêbados são capazes. O som vinha de uma casa onde um pessoal do Ceará rolava um pé-de-serra acústico, com uma qualidade assustadora e com repertório baseado em Jackson do Pandeiro.

Acompanhei blocos de pau e corda tocando músicas de Capiba e cia., outros sem rótulo específico, como o Boi Alinhado, o Boi da Gurita Seca e o Angatanamú, além shows de artistas locais como Lenine e Alceu Valença. As paródias de Lenine no seu Quanta Ladeira me fizeram morrer de rir. Mas o boizinho do Siba, como alguns chamam carinhosamente o Boi da Gurita Seca, foi para mim o ponto forte dos meus três carnavais em Olinda.

Fiquei sabendo por acaso da existência do Boi, pois estava na casa onde se preparava parte da logística do bloco. Era um final da tarde de uma sexta-feira, mais precisamente, do dia 8 de fevereiro de 1997, e eu tinha acabado de chegar na cidade, cheio de boas expectativas para meu primeiro carnaval.

Conheci então Dona Cleonice, que estava hospedada na mesma casa que eu. Fiquei surpreso e feliz quando soube ser a mãe de Siba, cujo trabalho no Mestre Ambrósio eu já seguia, na qualidade de fervoroso admirador desde que, pela primeira vez, eles pisaram devagar o chão da terra alheia do Rio de Janeiro em meados nos anos 90.

Naquela sexta, véspera de sábado de carnaval, Siba passaria pela casa para se trocar e para pegar o boi e uma burrinha, peças fundamentais do seu bloco, e feitas em papel machê por ele próprio. Obviamente não deixei passar a oportunidade e me encabecei na brincadeira, aliás, como todos os outros que estavam na casa.

Lembro-me muito bem desta minha primeira folia no carnaval de Olinda, acompanhando o Boi da Gurita Seca. Depois eu seguiria o bloco também no sábado de carnaval e na manhã de quarta-feira de cinzas (pois o boi sempre saía quando a cidade ficava menos cheia), e para mim isto se repetiria ainda durante os dois carnavais seguintes.

A concentração foi na Praça de São Pedro, se não me engano, durante a qual o boi e as pessoas dançavam no mesmo lugar, ao som de versos melodiosos entoados - e muitas vezes improvisados - por Siba à capela, depois repetidos em coro por todos. Entre um verso e outro, percussões típicas do maracatu rural, tocadas por outros artistas do Mestre Ambrósio, como Hélder, acompanhadas de instrumentos de sopro como saxofone, trombone e trompete, formavam um som contagiante que fazia com que todos - e não apenas Zé Limeira - sambassem maracatu, inclusive o boi, carregado então por Pipoca. Depois o boi seguia pelas ruas de olinda, acopanhado de seu cortejo.

Tive a oportunidade de carregar um pouco o boi, que era muito mais pesado do que eu poderia imaginar. Esta foi uma das várias experiências metafísicas que vivi naquela cidade, pois quando entrei no boi, tive a sensação de flutuar literalmente, de me desconectar da realidade - e olha que além de algumas latas de cerveja, não havia ingerido nenhuma substância “química aplicada ao terreno da alteração e expansão da consciência.”, para citar as últimas linhas do manifesto Caranguejos com Cérebro.

Por falar em Chico, o clima do carnaval era de muita tristeza por causa da sua morte absurdamente prematura, no domingo anterior, dia 3 de fevereiro. Eu havia acabado de chegar com Paulo André e Rodrigo em um restaurante japonês, vindos de Tamandaré, quando soubemos da notícia. Aquela semana foi de profunda tristeza, de inconformismo, e para mim, de reflexão e aprendizado.

Mas o trem do carnaval já vinha acelerando há semanas, e apesar da paisagem ter se tornado cinza com o desaparecimento de um grande artista local, que havia há pouco ganhado uma projeção nacional mais do que merecida, o trem já estava muito embalado para parar. O show teve que continuar.

O encontro entre o Boi Alinhado e o Boi da Gurita Seca em frente à casa da Dona Dá foi outra experiência metafísica. Durante o “duelo” de versos improvisados por Duda e Siba, Chico Science foi homenageado e lembrado com muita emoção, e Duda não conteve a sua e desabou em prantos convulsivos, que contrastavam com seu corpanzil.

Durante o encontro dos bois, senti novamente aquela sensação agradável, porém bizarra, de estar desconectado da realidade, de ver as coisas passarem ao redor como em um filme, ou uma outra dimensão, além de ter sentido no ar a mesma eletricidade, o mesmo fluxo de energia, que eu havia sentido quando o Daruê Malungo tocou durante o velório de Chico, na segunda anterior, energia que passava intermitentemente pelo meu corpo, me trazendo arrepios e me fazendo tremer.

Eu teria ficado até o final do encontro, mas uma mulher alguns anos mais velha do que eu me agarrou e terminamos a noite transando na caçamba de uma pick-up estacionada no jardim da casa onde eu estava hospedado. Eu estava crente que havia sido discreto, mas no dia seguinte meus amigos pernambucanos me zoaram muito, pois muitos que estavam na casa tiveram a oportunidade de ver, morrendo de rir, o sobe e desce ritmado da pick-up. Minha estréia no carnaval de Olinda não poderia ter sido mais intensa.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Homem x Natureza

O Homem sempre esteve em confronto com a Natureza para sobreviver e para superar os obstáculos por ela impostos. Na medida em que as tecnologias evoluíram, o Homem conseguiu se proteger cada vez melhor e até mesmo colocar a Natureza a seu serviço. Ele o fez de forma tão eficaz que, maravilhado, esqueceu da sua condição inicial e começou a imaginar que podia dominá-la completamente.

Este acontecimento na Europa é emblemático, pois fazer voar um avião talvez seja uma das tecnologias que mais “afrontam” as leis da natureza e dão ao Homem esta sensação de domínio. No entanto, esta sensação às vezes se revela falsa. Uma simples erupção vulcânica foi suficiente para paralisar parcialmente importantes atividades econômicas em boa parte da Europa e teve impacto no mundo todo por causa das restrições ao tráfego aéreo. Confrontado à sua arrogância e à sua impotência diante da Natureza, o Homem foi obrigado a se lembrar das diferentes ordens de grandeza entre seus poderes.

Um estudo de 2008 publicado na revista Geophysical Research Letters, sobre a geleira de Vatnajökull (a maior da Islândia e que cobre diversos vulcões naquele país) conclui que a retração das geleiras pode, no futuro, gerar um aumento da atividade vulcânica na região.

Os cientistas também relacionam a retração das geleiras como uma das conseqüências das mudanças climáticas causadas, sobretudo, pelo consumo de combustível fóssil, que explodiu a partir da Revolução Industrial. Portanto pode haver um elo causal entre as atividades humanas e um eventual aumento futuro da freqüência e da intensidade das erupções vulcânicas, de cujas conseqüências tivemos uma pequena idéia neste final de semana.

Se o Homem deixasse de tentar dominar a Natureza e a visse apenas como aliada, certamente ela nos trataria melhor. Neste caso, talvez a tecnologia não fosse tão “avançada” como é atualmente, mas ela provavelmente seria menos perniciosa. Algumas invenções trouxeram conseqüências que acabaram se voltando diretamente contra a própria humanidade, como o uso militar da tecnologia nuclear, não por causa da Natureza, mas da estupidez do próprio Homem. Em outros casos, como por exemplo o das mudanças climáticas e de suas prováveis conseqüências catastróficas, o tiro pela culatra pode acontecer como uma reação da própria Natureza às atividades humanas. Alea Jacta Est.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Rio de Janeiro 6 de abril de 2010

Inundações, deslizamentos e mortes. Muita dor, sofrimento e tristeza com a tragédia pela qual passam Rio de Janeiro, Niterói e outras cidades.

Entender a vulnerabilidade da Região Metropolitana do Rio de Janeiro a este tipo de evento é crucial para prevenir tragédias como esta.
Esta vulnerabilidade, já conhecida, é agravada em muito pela ocupação das áreas de risco, sem dúvida o problema mais grave, tanto pela sua extrema complexidade, quanto pelas suas consequências inaceitáveis, sobretudo o grande número de mortes relacionadas aos deslizamentos.

O volume recorde de chuva, causa seminal dos deslizamentos, teria sido causado por uma quantidade execepcional de umidade, fruto da conjugação de dois fenômenos meteorológicos: uma massa de ar vinda da Amazônia e uma frente fria vinda do sul.

Os cientistas sabem que o El Niño e sua irmã La Niña, apesar de terem origem no pacífico equatorial, tem uma influência sobre o clima do Brasil, inclusive na região Sudeste. O El Niño, por exemplo, faz com que parte da umidade da região amazônica seja empurrada para o centro-sul do Brasil.Alguns cientistas acham que as emissões de gases de efeito estufa devidas às atividades humanas poderiam estar tornando estes dois fenômenos mais intensos e mais frequentes,

Várias bacias hidrográficas encravadas na região metropolitana do Rio transbordaram, causando alagamentos. Isto aconteceu não apenas em consequência do volume recorde de precipitação, mas também pelo nível do mar execepcionalmente elevado, que impediu o escoamento natural da chuva para o oceano.

Ainda que a urbanização em si atrapalhe este escoamento, o transbordamento de rios e lagoas não é exclusivo de áreas urbanizadas, e os alagamentos de segunda e terça passadas teriam acontecido de qualquer forma, independentemente da urbanização e da capacidade de escoamento da rede pluvial da cidade.

A construção da cidade em várzeas e outras áreas naturalmente sujeitas a inundações, desconsiderando as idiossincrasias da natureza, tornou a região metropolitana do Rio de Janeiro estruturalmente vulnerável às enchentes.

Apesar de deslizamentos e alagamentos estarem ligados por uma causa comum, estes dois problemas podem e devem ser tratados e resolvidos em separado, com prioridades diferentes, já que o grande número de desabrigados e, sobretudo, os óbitos causados pelos deslizamentos são sem dúvida mais graves que os problemas causados pelos alagamentos, entre os quais destacam-se o caos no tráfego, a paralisação quase total das atividades urbanas e os prejuízos materiais.

É muito triste é ver pessoas conscientes do risco e dispostas a perderem suas vidas. Triste saber que por trás desta atitude muitas vezes esconde-se uma falta de escolha. E muito triste ver a passividade do Estado - e de toda nossa sociedade - diante desta situação.

Por fim, a vulnerabilidade estrutural da região metropolitana do Rio deverá aumentar em função do aumento da frequência e da intensidade dos eventos extremos e também da elevação do nível dos oceanos, prováveis consequências das mudanças climáticas.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Acorda bamba, se liga malandro, desperta esperto!

Assim começa o álbum único do grupo carioca Acorda Bamba que, em meados dos anos 90 , encantou o Rio com suas letras, melodias e arranjos originais e de qualidade e que antecipavam a explosão súbita de bandas e casas de forró, samba e choro que iria acontecer nos anos seguintes na cidade.

Eu particularmente era (e ainda sou) fã desta e de outras bandas, como Boato, Farofa Carioca e Pedro Luís e a Parede, cada uma com um estilo e uma estética original, porém todas com muita qualidade. Lembro de shows inesquecíveis, entre eles um do Acorda Bamba no dia 25 de agosto de 97. A data está marcada ao fim de umas linhas que escrevera então, inspirado pelo clima e pelo ambiente maravilhoso proporcionado pela música e pela beleza do lugar onde fora o show.

Uma noite, bela e fria

No Largo das Neves

Música e poesia

Choro, forró e samba

Chega mais galera

Tá rolando Acorda Bamba

Ontem tive o privilégio de ver um reencontro maravilhoso entre os músicos desta banda, que se reuniram após um longo tempo para um show no Centro Cultural Carioca. E também o reencontro da banda com seu público e com outros músicos, como Gabriel Moura do Farofa Carioca; Beto Valente, Rodrigo Cabelo e Justo do Boato; e Tereza Cristina. Muita saudade daquela época, como disse em lágrimas, no palco, a bela voz da sambista carioca, para quem a banda teve uma importância particular, segundo ela própria.

Emoção, nostalgia e alegria foram a tônica de uma noite maravilhosa de chuva, que por sinal aumentou de intensidade justamente durante a música Chove na Roseira.