terça-feira, 14 de setembro de 2010

glasses turner


Ele tinha uma relação absolutamente contraditória com a astrologia. Sentia uma pontinha de inveja dos que adivinhavam o signo dos outros com menos de um minuto de conversa, porém ele mesmo tinha dificuldades de lembrar todos os signos do Zodíaco. Sabia os do seu irmão e da sua mãe, mas não sabia nem o do seu pai, nem o da sua última paixão. Todas as vezes em que lera seu mapa astral, ficara bastante impressionado, porém aqueles mapas nunca tiveram algum tipo de influência em sua vida. O determinismo contido implicitamente naqueles planos astrais o incomodava muito.




Ele a havia conhecido recentemente. Acabaram trocando figurinhas literárias e astrológicas: ele forneceu hora, dia e local de seu nascimento. Ela lhe enviou em seguida uma longa mensagem com conjunções entre sol, lua e planetas. Era um mapa astral. Fazia décadas, literalmente, que ele tinha lido seu mapa astral (influência de sua mãe), perdido e esquecido também há outro tanto tempo. Mais uma vez ele ficara impressionado. E novamente, incomodado com o determinismo.

Nesta última leitura surgiu a dúvida: quer dizer que aqueles que nascem no mesmo dia, hora e local seriam “gêmeos astrais”? Mas e o ambiente psico-social? Ele não pode deixar de ter influência no indivíduo, pensou ele. Lembrou das aulas de biologia que ele não havia matado para ir surfar (nada contra a biologia, era apenas fácil demais): genótipo, características genéticas no momento do nascimento; fenótipo, como estas características se manifestam em função do ambiente. Ou algo assim. Fez o paralelo entre a mensagem recebida, que continha uma descrição incrivelmente precisa das suas características em função da conjunção dos astros no momento do seu nascimento. Algumas destas características, verdadeiras no passado, porém, já não batiam. Ele havia mudado. Evoluído ou involuído, dependia do ponto de vista. E pensou “Ora, esta conjunção de astros no momento do meu nascimento é o meu 'genótipo astral' (ou melhor, astrotipo). Boa parte das características permaneceu, mas alguma coisa mudou. O meu fenótipo é diferente. E outras coisas poderão ainda mudar ainda. Tomara”. Pesquisou a etimologia de fenótipo. Do grego phaino, aparecer, brilhar. O termo fenótipo astral fazia sentido. Cunhou para si os conceitos de gêmeos astrais, astrotipo e fenótipo astral, e assim mitigou seu desconforto com o determinismo intrínseco aos mapas astrais.

Continuou, porém, negligenciando o que os astros lhe diziam.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

v.i. iv

ou "le talon ii" (ou ainda "a benção")

Estava novamente no saguão do aeroporto de Viracopos em Campinas, esperando o embarque para o Rio. Definitivamente aquele local o inspirava. Mais pela espera ociosa do que pelo ambiente em si. Sua técnica para dormir sentado não funcionara desta vez. Lembrou-se então da bela jovem de salto muito alto e muito fino que vira algumas semanas antes naquele mesmo lugar. Se deu conta então que seu sentimento em relação aos sapatos daquele tipo eram contraditórios. Por um lado, os achava bonitos e apreciava bastante o charme por eles conferido às suas portadoras; por outro, os via como uma barreira física, já que eles tornavam pontos estrategicamente vulneráveis, tais como nuca, orelhas e boca, distantes da sua. Às vezes, mais que distantes, fora de alcance mesmo. Além disso, via naqueles sapatos uma arma. Isto desde o dia em que imaginou uma linda mulher com um salto absurdamente fino esticando a perna em sua direção e empurrando o calcanhar para fora, como uma benção (bem naquele lugar). Por que cargas d’água os capoeiristas chamavam esse chute de benção, ele não sabia. Depois de imaginar a cena, percebeu toda ironia contida no nome daquele golpe.