sábado, 15 de janeiro de 2011

Crônica de uma tragédia anunciada

Lembro-me claramente da segunda-feira 5 de abril de 2010. Estava com meu pai em uma pizzaria quando disse “essa chuva vai dar merda”. A constatação era óbvia. Não me lembrava de ter visto em toda minha vida uma chuva de tamanha intensidade. Durante aquela madrugada, em que dormi tranquilamente embalado pela chuva, centenas de pessoas perderiam suas vidas ou a de seus familiares. Outras dezenas de centenas veriam suas casas desabar ladeira abaixo literalmente e ficariam desabrigadas. No dia seguinte, as cidades do Rio e Niterói acordariam em estado de caos. Mais uma tragédia anunciada.

Na última terça-feira 11 de janeiro, também chovia bastante quando saltei do carro em frente à arena onde Amy Winehouse faria sua segunda apresentação no Rio e terceira no Brasil. Enquanto minha amiga estacionaria o carro, eu iria retirar os ingressos na bilheteria e ficar na fila. A chuva era intensa, fazendo funcionar a todo vapor seu comércio informal - no Rio, quando chove, sempre há um ambulante por perto oferecendo proteção, praticidade que revela de certa forma a precariedade social do país.

A excitação e a expectativa de ver ao vivo uma artista com o talento da Amy, aliadas a uma boa dose de egocentrismo natural do ser humano (muitas vezes exacerbado em alguns), impediram-me de pensar na identidade à qual os cidadãos fluminenses (eu inclusive) parecem ter se acomodado: chuva forte no Rio de Janeiro = tragédia.

Minha preocupação maior era achar guarda-chuvas para mim e para minha amiga (pois as capas reinavam absolutas), sem o que ficaríamos encharcados, encontrar o fim da fila que estava enorme, e reencontrar minha amiga, que fora estacionar o carro. Em momento algum, nem mesmo quando tivemos que colocar o pé na lama para chegar ao carro depois de terminado o show, pensei que mais uma tragédia estaria começando. E desta vez, a pior de todas elas. Total incapacidade de se colocar no lugar do outro. De pensar nos que moram em áreas de risco e que vivem um drama toda vez que chove.

Depois, quando caímos na real, graças à mídia, que não deixa de tirar seu quinhão e vai muito além do que deveria explorando literalmente a tragédia dos outros, vem a mobilização, a sensibilização. Claro, não podemos ficar insensíveis e devemos ser solidários, mas esse comportamento social esquizofrênico mais parece uma forma de expurgamos a nossa culpa do que um exercício de cidadania. E tasca colocar a culpa no governo. Como se não vivêssemos em uma democracia... Como se não fôssemos nós quem elegesse nossos representantes...

Fazemos nossas doações e nos sentimos melhor. No dia seguinte, voltamos para os shows e para o surfe, e esquecemos de que fazemos parte da sociedade e que é esta sociedade de fato a responsável.

Garimpando o pouco que presta do Globo, encontrei uma frase do Chico Alencar, por quem não tenho simpatia em especial, mas que não poderia resumir melhor o meu sentimento e, ao meu ver, nossa situação como cidadãos brasileiros e fluminenses em particular: " a comovente e episódica onda de solidariedade não tem se transformado em torrente cidadã permanente.”