segunda-feira, 31 de maio de 2010

O nada por horizonte: alter Ado


A dor de cabeça mortifica. A língua e os lábios, de tão secos, estão colados. Levanto com dificuldade. Procuro o celular para ver a hora: três da tarde, e sete chamadas não atendidas. As seis primeiras passaram em vão. A última me acordou. A água fria nos olhos vermelhos ajuda a fazer cabeça voltar a funcionar.


As cenas da noite anterior surgem naturalmente. Algumas cervejas na sala com Ado e Malu. Papo interessantíssimo. "A movimentação sem significado, tendo o nada por horizonte, é o clima da falta de fundamento." Truffaut. Auster. Seleção musical incrível apesar das interrupções. Depois Braseiro com Roberta e Guta: Love Hurts e Drama Queen tatuados no peito. Tony chega. Com o Braseiro fechado, Jobi é o desdobramento natural. Quantidades industriais de chope.


O enjôo me traz de volta à realidade. A perspectiva de um mergulho no mar de Ipanema, seguido de uma água de côco gelada, me permite continuar a viver. Drama King.


Anseio que a água esteja limpa e gelada. No caminho, um senhor me para e pergunta como vão meus pais. Forço um sorriso na medida do possível, tendo por limite o crânio querendo rachar. Não me recordo nem da sua fisionomia, nem do seu nome. Zero.


O mar está limpo e agitado. Furo a arrebentação por baixo dos rolos de espuma que vêm em sequência regular. Passo a última onda antes que estoure. Paro além da arrebentação para recuperar o fôlego.


Uma onda surge, o sol a torna translúcida. Nado com força até ser levado pela onda, que logo me envolve em um tubo de cristal. Encho o peito de ar antes do caldo. 15 segundos relaxados debaixo d’água antes de voltar à tona, graças ao ar preso nos pulmões. Reflexo dos anos e anos de surfe na mesma praia.


Uma ressaca remedia a outra. A água lava o cansaço. Seco ao sol. Compro um côco na barraca onde o Ado é freguês. Obrigado seu Ado, me diz o barraqueiro. Estranho, mas deixo passar. Sigo meu rumo de volta para casa.


Na portaria do edifício, o porteiro me entrega um envelope. Chegou agora para o Senhor. Antes de colocar no bolso, vejo o destinatário: Ado Benvenuto. Digo que entregarei o envelope ao Sr. Ado assim que ele chegar. O porteiro me lança um olhar estranho. Não ligo.


Abro a porta, sôfrego, para responder ao telefone que toca insistentemente. Alô. Minha voz sai com esforço. Ado, meu filho, tudo bem? Desligo no mesmo instante. O telefone toca novamente, mas absorto em meus pensamentos, não atendo. Estranho a sequência de confusões. Eu me chamo Marcoré, e não Ado. E as diferenças físicas entre nós são gritantes. Ligo para o celular do Ado. A voz informa que o número não existe. Tento o celular de Brasília. Idem. Estranho, muito estranho.


Resolvo fazer um teste. Ligo para Malu, que conhecera na véspera. Ela atende dizendo de cara Ado! Que bom que você ligou, estava pensando em você! Hesito um instante, mas resolvo levar o teste adiante, propondo um encontro. Marcamos um café na Livraria da Travessa. Em meia hora.


Os 30 minutos levam uma eternidade. A ansiedade me paralisa. Cumprimentamo-nos com um abraço. Dois expressos por favor, comandamos ao garçom. Depois de alguns segundos de silêncio, ela diz “Ado, preciso falar contigo sobre um assunto sério”. Peço licença para ir ao toalete, e saio correndo, com o coração a mil na direção da casa do Ado, onde estava hospedado. Subo os 5 andares, jogo minhas coisas na mochila, desço e pego um táxi. Icaraí, Niterói, por favor, instruo o motorista. Ligo para meu pai. Quero avisar que estou a caminho da sua casa. Alô. Pai? Gostaria de falar com quem? Pai, pai, sou eu! Ele desliga, para meu desespero.


Ao chegar a sua casa, o porteiro me barra: pois não? Resolvo não discutir. Vou para a casa do Marcoré. Não tem ninguém em casa. Eu sei, respondo-lhe mostrando o chaveiro, estou com a chave do apartamento, veja. Ele a deixou comigo e ficou de avisar na portaria que eu viria. Senhor, não há recado algum, e infelizmente não posso permitir que o senhor suba sem autorização.


Insisto, mas não há nada a fazer. A solução é esperar no hall de entrada do edifício. Adormeço no sofá, e acordo com meu pai me sacudindo levemente pelo braço, perguntando o que eu fazia dormindo lá.


Estou sem chave, minto, e acabei dormindo. Levanto e o sigo até o elevador. Seus lábios se movem, mas não o escuto. As cenas do sonho desfilam em minha mente. Nunca antes eu lembrara de um sonho com tantos detalhes, com tanta nitidez. Recordação integral. Não fosse o absurdo do sonho, sua total falta de fundamento, eu o juraria realidade.


O elevador chega. Num reflexo, penso em pegar a chave, mas interrompo o movimento a tempo de não revelar minha mentira. Deixo a mão no bolso. Junto à chave, sinto um volume diferente e, ao retirá-lo do bolso, reconheço o enveloppe que me fora entregue pelo porteiro do Ado. Meu pai se despede de mim com um “boa noite” polido. A porta do elevador se fecha, e um arrepio percorre meu corpo em ondas convulsivas.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Bye bye Paris


Estes meus últimos dias em Paris coincidiram com o XII Festival Jangada de Cinema. Consegui me organizar para ir ver alguns documentários sobre música ou sobre músicos brasileiros, inclusive alguns na véspera da minha partida, depois de 7 anos e meio na Cidade Luz.

Na saída de Beyond Ipanema, encontrei Pedro D-Lita, que eu conhecera por intermédio do Domenico Lancellotti, amigo em comum de quem gosto demais e cujo talento como artista (baterista, compositor, cantor, gritador, pintor) admiro muito.


Pedro ia tocar na festa de fechamento do festival, em alguns dias, com mais três outros DJs , todos também meus amigos: Bertrand Doussain, francês que eu conhecera no Rio pelo seu trabalho como flautista no Farofa Carioca, mas que fiquei conhecendo melhor em Paris; Chicote, de Olinda, idealizador do Rio Maracatu, radicado no Rio mas de passagem por Paris, e que eu conhecia já do Rio, da mesma época do Bertrand; e o Stéphane Nino, que há alguns anos integrara o programa Décalage Horaire, transmitido pela rádio livre Frequence Paris Pluriel (FM 106,3), ou pela internet, aos domingos, de meio dia às duas da tarde, horário de Paris.


Abre parênteses: O programa, que já tem 30 anos, é realizado por outro amigo, Paul Ghanem, e dedicado exclusivamente à música brasileira, da qual Paul é um grande conhecedor, colecionador e admirador. Além de música ao vivo e entrevistas com artistas brasileiros radicados ou de passagem pela França, o programa passa constantemente músicas e artistas que eu não conhecia. Há alguns anos, o programa passou a contar com uma crônica musical de cerca de 20 minutos, feita pelo Stheph, com quem também aprendi muito sobre música brasileira em solo francês. Fecha parênteses.


Pedro então me convidou para dar uma canja na festa, que seria no dia 19, na véspera da minha viagem. Apesar do meu avião para o Rio levantar vôo algumas horas apenas após o final da festa, agarrei na hora a oportunidade, com um misto de felicidade e gratidão, pois tocar com quatro amigos, no Alimentation Générale, na festa de fechamento daquele festival, era um convite irrecusável, ainda mais na fissura que eu estava, pois minha atividade de DJ está cada vez mais bissexta.


Aceito o convite, comentei com Pedro que eu tinha notado que Freestyle Love, do Stéreo Maracanã, grupo formado por ele, Maurício Pacheco, entre outros, fazia parte da trilha sonora do filme (Maurício havia feito parte do Mulheres Que Dizem Sim, com Domenico, Pedro Sá e Palito/ Bartolo). Comentei também que eu ira para o Rio em breve e que chegaria a tempo de ir a exposição de fotos de sua mãe, Lita Cerqueira, no espaço Oi Futuro do Rio.


No festival, vi ainda três outros documentários maravilhosos, com destaque para Dzi Croquettes, cuja existência até então eu desconhecia totalmente. Ao contar a história da trupe, repleta de alegrias e sucessos, sem esconder as tragédias e os fracassos, os diretores Tatiana Issa e Rafael Alvarez colocaram tanta emoção e sensibilidade no documentário que meus olhos pareciam uma cachoeira. Também me emocionei e aprendi muito com Loki, Arnaldo Baptista, de Paulo Henrique Fontenelle, que assisti no mesmo dia.


Tamanha emoção que no dia seguinte tratei de acelerar o fechamento das malas para poder ver o filme que iria encerrar os festival, Os filhos de João Gilberto: o incrível mundo dos Novos Baianos, de Henrique Dantas. Fui com Thiago e Arnab, dois grande amigos, e aproveitei para me despedir deles na saída com uma cerveja. Emendei com outra despedida, jantar com Dominique, sem dúvida o amigo mais presente, e acabei chegando na festa pouco depois da meia-noite. Dois outros amigos queridos estavam presentes em clima de despedida: Venance, João e Felipe.


Curti um pouco a festa com os amigos e pouco depois de uma hora da matina fui para a cabine do DJ fazer um pouco de pressão para ver se conseguia tocar algumas músicas, já que a festa terminaria às 2h. Tava difícil tirar o Steph das carrapetas, até que o Said, o gerente do local, avisou que a música teria que parar à 1:40h, para decepção de todos, e para meu desespero, pois já era 1h30. Bom, 10 minutos é melhor do que nada, e tratei de colocar Freestyle love, em homenagem ao Pedro e ao filme Beyond Ipanema, e depois Besta é Tu, em homenagem à família Cidade Gomes e ao documentário sobre os Novos Baianos. E sobretudo porque estas músicas já faziam parte do meu repertório porque são boas para c.... e sempre fazem todo mundo dançar.


Aproveitei as poucas horas entre a festa e o vôo para terminar de arrumar minhas coisas e deixar o apartamento limpo para o próximo ocupante. Cheguei virado no aeroporto e dormi durante quase todo o trajeto.

A festa foi na terça 18/05. O vôo partiu de Paris na manhã do dia seguinte, e chegou ao Rio na própria quarta de noite. Na manhã do sábado seguinte, um pouco antes de pegar a estrada para Itaipava, passeava a pé pelo Leblon a procura de um lugar para sentar e tomar um expresso. Entro em um café que ainda não conhecia, com mesas na calçada, numa rua transversal à praia. A varanda estava lotada. Sentamos numa mesa na parte de dentro. Fiquei de frente para a parede, onde reparei duas belas fotos em preto e branco do Rio, dos lugares onde morei até ir para Paris: Lagoa e Ipanema. E ao prestar mais atenção, vi que as fotos foram tiradas pela mãe do Pedro, Lita Cerqueira, cuja exposição faz parte dos meus planos da semana.


Tamanha coincidência teve que ser postada imediatamente no facebook. Pedro e Marcinha responderam na hora, e ela me sugeriu fazer uma crônica, que por sinal acaba de terminar.

sábado, 15 de maio de 2010

Austero?

"Mais tarde, talvez venha a fazer outra coisa. Quando não serei mais poeta. Veja você, mais dia menos dia, as palavras me faltarão. Toda pessoa possui, dentro de si, uma quantidade limitada de palavras. Onde estarei então? Creio que gostaria de ser bombeiro. E depois disso, médico. Por último, equilibrista. Quando for bem velho e que terei finalmente aprendido a andar como todos. Dançarei então sobre a corda bamba, e as pessoas ficarão boquiabertas. Até mesmo as criancinhas. É disso que eu gostaria. De dançar sobre a corda bamba até que chegue a minha hora."

Tradução livre do francês de um trecho do Monólogo de Peter Stillman, diante de Quinn, na Cidade de Vidro, de Paul Auster.

terça-feira, 11 de maio de 2010

La Mer et la Mère

O pedido de uma leitora, que festejou seu dia no domingo passado, me fez escrever antes do previsto. Trata-se de uma pessoa especial, e não apenas por ser minha única leitora. Não, não, há que se fazer justiça: Tatá, João, Zé também lêem o Contramão, não movidos pelo sentimento maternal, que tem tudo menos neutralidade (tenho certeza de que a mãe do Olavo de Carvalho não perdia uma daquelas suas colunas surreais no Globo). Mas mamãe mandou um email na segunda-feira perguntando se tinha crônica, e eu tinha publicado uma na sexta anterior!!!! Com isso, ela já fez por merecer uma, feita especialmente para ela. Como estou de mudança internacional, faltam tempo, paciência e estado de espírito para escrever, mas há alguns temas que gostaria de desenvolver em breve: a beleza e as infinitas possibilidades do xadrez; os passeios e eventos nos subterrâneos e nos telhados de Paris; e o projeto La Mer em SoliDaire e a travessia do Atlântico realizada pelo veleiro Podorange, tripulado por uma amiga e dois cadeirantes, que tive o prazer de conhecer por seu intermédio (fiquei sabendo que o termo está na moda no Brasil por causa da novela, mas sinceramente, prefiro deficiente, não apenas pelo som, mas será que o fato de se usar um eufemismo já não revela um enorme preconceito?). Pois é amigos, estas foram as cenas dos próximos capítulos, a serem escritos um dia, provavelmente já em Terrae Brasilis, se nosso amigo vulcão islandês deixar.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

The Yoni


O problema (ou a solução) de trabalhar ouvindo FIP ou Nova é que, por mais concentrado que esteja, volta e meia sou obrigado a interromper meus afazeres para pesquisar em seus websites que música ou versão estão passando, já que raramente os autores e os nomes das músicas são citados pelo locutor. Por curiosidade, atualizo constantemente os sites para descobrir, ou confirmar, em suas playlists, as músicas e, sobretudo, os autores, que me interessaram. Hoje de tarde, uma música me chamou a atenção logo que entrou. Docemente se insinou em minha mente e já em sua metade alguma coisa me prendeu. Não sei exatamente se a melodia, os arranjos ou a voz do cantor, ou tudo junto, que me lembraram, sem que eu me desse conta naquele momento, algo como Nick Cave ou Leonard Cohen. Talvez por isso o interesse. Fui ao website da FIP e achei autor e música: Budam, The Yoni, do álbum Stories of Devils, Angels, Lovers and Murderers. Em seguida, ao invés de anotar o nome em meu Moleskine, fui direto ao Deezer para escutá-la novamente. Aproveitei e escutei o disco todo, mas confesso que gostei muito mais desta música em particular. Coloquei todo o álbum no iphone para ouvi-lo com calma depois, pois o autor merecia ser descoberto. A afinidade com a música veio antes mesmo de eu começar a entender a letra, várias horas mais tarde. Talvez eu já tivesse, inconscientemente, prestado atenção na letra, o que explicaria facilmente o interesse específico por esta músca, mas tenho quase certeza de que a atenção inicial surgiu por razões estritamente musicais. A letra ficou clara posteriormente, quando voltava de bicicleta para casa, após um ótimo jantar em comemoração aos 50 anos do Marcelo, no alto do Centre Pompidou. Pedalando por Paris de madrugada, tive finalmente a oportunidade de me concentrar na música. Gostei tanto da imagem que, ao chegar em casa, apesar do avançado da hora, não tive outra saída a não ser escutar a música uma dezena de vezes para transcrever as palavras, já que não consegui achar a letra na net, apesar da busca insistente. Se a letra fora publicada antes ou não, pouco importa, pois tive grande prazer em transcrevê-la. Restam algumas dúvidas e, as correções são bem-vindas. Sugiro a experiência de escutar primeiro a música sem prestar muita atenção na letra, pois a música em si já é uma delícia. Quando a mensagem chega, o prazer se pontecializa. Para ouvir a música, basta ir ao Deezer por exemplo. No Myspace do artista, ela infelizmente não está disponível. Para os apressados, a letra segue abaixo.

The Yoni (Budam)

There is a magical place
Surrounded by mystical haze
Its history’s untold
Its secret’s unknown
But ever man knows where it is
It’s hidden deep in the wood
The dark and feminine wood
It’s dangerous
For all of us
But you should go there, yes you should
It is a kind made by the gods
Their finest and best work of art
‘Cause it’s deep, and it’s warm
And it’s soft, and it’s moist
It’s the Yoni
When you come to this beautiful place
Remember to treat it with grace
Undress it, caress it
Make sure that the fire is lean
For this cave it has a keeper
That might not let you go deeper
So use your lips
And use you your tongue
To persuade the keeper to come
And when it’s wet just like the rain
And you gladly going insane, and you say
This cave was made by the gods
Their finest and best work of art
‘Cause it is deep
And it’s warm, and it’s soft
And it’s wet, it’s the Yoni
Some say its fruits are forbidden
Someone (tent?), desperately hidden
And it’s fruits of life
And fruits of joy…
I wanna kiss it, touch it, and lick it
To make sure that the fire is lean
I’ll make you (mone?)
I’ll make you come…
And when the fire is burning with love
And the angels are singing above
And when it’s wet just like the rain
And I’m gladly going insane
I scream
This cave was made by the gods
Their finest and best work of art
‘Cause it is deep, and it’s warm,
And it’s soft, and it’s wet
And it’s feminine, and it’s beautiful
And it’s life, and it’s love
And it’s you