quinta-feira, 29 de julho de 2010

Le talon


Ele estava sentado em um café, esperando seu vôo de volta para o Rio quando ela passou, com um sapato de salto tão alto e tão fino que tornava evidentes as razões da dificuldade mal disfarçada que ela tinha em andar. Esta habilidade certamente seria desenvolvida com o passar dos anos - que no seu caso ainda eram poucos. Boa parte da autoconfiança daquela jovem, estampada em seu belo sorriso, apoiava-se, naquele momento, literalmente em seu sapato. Ele não deixou de lhe dar razão e, com esta simples observação, passou a entender um pouquinho melhor algumas idiossincrasias femininas.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Ego e Deus


A maior frustração de Ego foi descobrir que não era Deus. Sentiu-se perdido ao ter plena consciência de que ele era apenas ele mesmo. Foi um baque sério na sua autoconfiança, que até então era tanta que resvalava a arrogância e flertava com uma vaidade escabrosa. Nada como os golpes da vida para baixar a bola dos Deuses de plantão.

O egocentrismo, no entanto, ficaria como uma cicatriz em sua pele. Duas décadas mais tarde, Ego veria outro Deus, este vindo de um pouco mais ao sul do Equador que ele, baixar literalmente sua bolinha. A escovada que sua equipe levou na África do Sul foi um choque de realidade. Daqueles que fazem com que alguns “Deuses” percebam que são de fato humanos.

Foi fácil para Ego entender as razões do prazer intenso e inefável que sentira com a humilhação do técnico argentino. A hostilidade que ele sentia por Maradona tinha como justificativa a arrogância que o craque fanfarrão fazia questão de ostentar publicamente na mídia. Ego, porém, tinha plena consciência de que no fundo o incômodo existia porque Maradona o remetia à sua própria arrogância e ao seu próprio egocentrismo.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Encontros e desencontros
Na madrugada de domingo
Sexos opostos se atraem
Mas há uma barreira
A ser transposta
Um paradão de gelo
A ser escalado
Não me sinto alpinista
Deixo de lado cordas
Pinos e mosquetões
E recorro à caneta
Vejo, do topo da colina
A silhueta feminina
Bela e intocável
Vontade e receio se mesclam
Escrevo minha mensagem
Que como uma folha seca
Desce suavemente
Planando ao sabor do vento
Fico de cima observando
Mas não a espero chegar
Talvez a atração
Seja numa só direção
Mas jamais saberei
Não quero, não importa
Me basta a inspiração
E do outro lado da porta
A madrugada do primeiro
Dia de agosto no Rio
Me receberá abertamente
Com um sorriso quente
Um abraço frio
E a lua cheia de brinde

Bukowski, 01/08/1999

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Lua da Janela


Madrugada em Ipanema. Ele entra em seu quarto. Luz apagada. Janela aberta. Ao ver uma luz forte e azulada no chão, ele pensa consigo: “É ela!” Acode à janela verificar. De fato era. Cheia. A pino.

O seguinte lhe vem à cabeça e é passado imediatamente para o papel:


Uma réstia de luz azulada

vem de uma fresta

da janela do meu quarto

que resta aberta


Uma fresta da lua

no resto da noite


Uma fresta da madrugada no papel.


Ele recorre ao dicionário. Procura pela palavra fresta, para se certificar do sentido empregado. Satisfaz-se. E encontra também o seguinte:

3. Fenda, greta, frincha, fisga. “contemplei-a do terraço, através da fresta do batente, e meu propósito de paz se acentuou” (Antônio Olavo Pereira, Marcoré, p. 173).

Até então, ele não sabia que o livro do seu avô havia sido citado no Aurélio. Milhares e milhares de verbetes, e ele cai justamente sobre um que citava seu avô, que sempre o aconselhava de ler uma página de dicionário por dia. Ele, no entanto, indolente, raramente o abria.

Por este motivo, e também por ter escrito aquelas linhas de sopetão, o que lhe é raro, ele suspeitara, na época do ocorrido, de que seu avô as haveria soprado em seu pensamento. Hoje, esta suspeita foi diluída pelos anos passados no país das luzes.