sábado, 26 de fevereiro de 2011

Tião, Aldo e Oscar


Conheci Tião ano passado, lá mesmo em Gramacho. Foi uma oportunidade trazida por meu grande amigo Aldo, que havia desenvolvido com o catador um importante laço graças ao seu trabalho na Secretaria de Direitos Humanos e, em particular, a uma lei por ele concebida e que obrigava as empresas estatais a destinaram aos catadores todo o material descartado porém passível de ser reciclado. Foi enorme o benefício trazido pela lei e Aldão, que ficou com um baita cartaz junto àquela categoria, fez bons amigos, entre os quais Tião.

Abre parênteses: desde 1999 eu vinha estudando a questão do aproveitamento energético do lixo através do uso do biogás como combustível. Também vinha olhando a economia de energia – e, por conseguinte, as emissões evitadas de gases de efeito estufa – em decorrência do processo de reciclagem de alguns materiais como vidro, alumínio, papel e plástico. Em 2001 o CentroClima, centro de pesquisa do qual eu fazia parte na COPPE/UFRJ, elaborou um projeto piloto, baseado em Gramacho, que tinha como objetivo produzir uma pequena quantidade de eletricidade renovável, usando como combustível o biogás produzido naturalmente pelo próprio aterro. Ademais, o projeto previa a plantação de mamona, também no aterro, com o duplo objetivo de recuperar parcialmente a área e de gerar matéria prima para a produção de biodiesel, que seria o segundo combustível renovável a ser utilizado para geração de eletricidade. Muito interessante na teoria, o projeto avançou na prática até certo ponto, mas não deslanchou por motivos que não cabem aqui detalhar. Fecha parênteses.

Eu havia voltado ao Brasil há poucas semanas, após 8 longos anos na Europa. Estava no Rio com Aldo quando ele comentou que iria participar de uma reunião em Gramacho entre funcionários do INEA e lideranças dos catadores. Não hesitei e me convidei no mesmo instante. Aldo aceitou, também de bate-pronto.

Participei como ouvinte da reunião e achei bastante interessante o encontro, que tinha como objetivo, entre outras coisas, organizar um encontro estadual da categoria, se não me falha a memória. Fiquei especialmente impressionado com um jovem muito articulado e carismático, e também com sua história de vida, que fluía na medida em que eu fazia perguntas durante as pausas da reunião.

Tenho admiração por pessoas que conseguem não ser esmagadas pela vida a despeito da falta de oportunidades e da desigualdade de condições. Esta admiração é ainda maior quando estas pessoas conseguem algum tipo de destaque. Tião, quando criança, trabalhava com a mãe. Eram catadores de material reciclável em Gramacho. Ele “teve sorte” quando a entrada de crianças no aterro foi proibida, pois isso lhe permitiria fazer o que toda criança deve fazer: estudar ao invés de trabalhar, e Tião soube aproveitar esta oportunidade.

Como ele mesmo nos conta no documentário Lixo Extraordinário, no qual Vik Muniz, ao mesmo tempo em que se auto-promove, nos emociona ao transformar em arte a dura realidade dos catadores, Tião leu O Príncipe. O jovem líder achara no aterro, onde voltaria a trabalhar depois de atingida sua maioridade, um exemplar “chorumado” do clássico de Maquiavel. Sua curiosidade acerca do adjetivo maquiavélico, que ouvia falar com frequência, serviu de estímulo para que o livro fosse recolhido para ser devidamente lido depois.

Por ocasião do meu encontro com ele em Gramacho, Tião me contou que, na medida em que ele ia se politizando, as portas iam se abrindo. E que sua ida à primeira edição do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, que reúne lideranças importantes de diversos grupos minoritários, faria com que ele tivesse outra dimensão da importância dos líderes, papel que ele foi assumindo naturalmente junto aos catadores.

O trabalho de Vik Muniz, que teve a sensibilidade para potencializar as virtudes do líder catador, trouxe a Tião uma grande exposição mediática, que culminou com sua ida a Londres para presenciar o leilão da sua própria imagem na Sotheby’s, e com sua participação na cerimônia de entrega do Oscar, ao qual o filme concorre na categoria de documentário.

Tião tem dado mostras de que quer dividir com seus companheiros os benefícios que estes acontecimentos vêm trazendo à sua vida, o que apesar de natural, é admirável. Torço para que o filme ganhe o Oscar. Torço, sobretudo, pelos catadores e por Tião, imagem legítima - e agora também cult - da categoria, que vem sendo representada com propriedade e sabedoria pelo jovem líder.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

O Mestre dos Contrastes

É sempre muito bom poder ir ao CCBB, seja apenas para tomar um café, seja para uma exposição. Neste segundo caso, difícil é ter tempo e principalmente estado de espírito para aproveitar o programa plenamente. Mas felizmente, de vez em quando, conseguimos reunir as condições ideais (ou mínimas) de temperatura e pressão.Foi meu caso no final da tarde de quarta passada, quando vi “O Mundo Mágico de Escher” , que fica até 27 de março no Rio.

Fui direto do escritório, que fica a apenas 5 minutos do local da exposição, e aos poucos fui me desconectando dos problemas nossos de cada dia. Apesar do tempo limitado e espremido por um compromisso em seguida, e a despeito de uma leve concorrência pelo espaço das galerias, deu para penetrar bem no universo do artista, graças não apenas a sua genialidade, mas também à curadoria excelente.

Entre as preciosas informações que ajudam a melhor percorrer o impressionante trabalho do grafista holandês, aprende-se que ele havia uma relação especial com o infinito. Isso é explicitado, por exemplo, em breve nota sobre “Menor e Menor”, cujos temas diminuem de fora para dentro (ou será que crescem no sentido inverso?).

E também sobre “Limite do Círculo (Céu e Inferno) IV”,

cujas figuras, inversamente às da gravura anterior, diminuem à medida que se caminha do centro para os limites exteriores do círculo, que paradoxalmente parecem não existir. Apesar dos temas geométricos diferentes, a relação entre os dois e o infinito é óbvia. Ainda que evidente, talvez esta relação passasse em branco (e preto) pelo consciente do expectador mais apressado que não lesse a preciosa informação. Mas dificilmente ela deixaria de reverberar no inconsciente de quem vê as figuras, ainda que en passant.

E foi exatamente o que aconteceu comigo. Após uma segunda exposição - esta sobre transporte sustentável no Centro Cultural dos Correios - e depois da terceira e última mudança de bar (portanto horas depois de ter visto as gravuras de Escher), a questão do infinito e do inconsciente não pode deixar de emergir do meu.

Aliás, eu já pensava muito no inconsciente como um universo, logo como algo infinito, apesar dele estar fisicamente circunscrito em nossa caixa craniana. Ou não!, talvez dissesse Caetano, inspirado por Jung, segundo quem nosso inconsciente estaria de certa forma conectado ao universo. Ou estarei escrevendo besteira? Pode ser, nunca li Jung, mais uma lacuna a ser preenchida, mas acho que vai por aí sua idéia de sincronicidade.

Naquele momento, em um insight a posteriori, percebi que “Menor e Menor” era, para mim, a imagem clara desse universo circunscrito no cérebro humano, que contrastava claramete com “Limite do Círculo”, para mim a nítida expressão da expansão do universo, como e onde quer que seja seu limite - ou sua ausência, o que é ainda mais angustiante. Ao pensar nesta falta de fronteiras, senti uma espécie de arrepio na coluna e de frio na barriga, que contrastaram com o calor infinito daquela noite na Praça XV.

Preto e branco, dentro e fora, finito e infinito me mostravam a maestria de Escher e de sua arte dos inversos e dos contrastes.

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Hoje Antônio Olavo Pereira, autor de Fio de Prumo, Marcoré e Contramão, completaria 98 anos de idade. Onde quer que ele esteja - próximo, quem sabe, aos limites do universo - estamos conectados.