terça-feira, 13 de outubro de 2009

Vergonha nacional

Não, não estou falando da situação do Rio, mas sim da charge, esta sim, uma vergonha nacional, pois retrata de forma extremamente preconceituosa, negativista e reducionista uma triste realidade do Rio. Aliás, a visão limitada da charge reflete, infelizmente, a de muitos brasileiros, inclusive de vários estudantes e pesquisadores brasileiros residentes na França. A charge não pode ser encontrada no blog do autor, provavelmente por que ele tem noção do impacto negativo que sua divulgação teria para sua imagem pessoal. Mas a assinatura está aí e estamos aqui para corrigir isso. Parabéns pela belíssima charge, Mr. Camaleão!!!!! Bravo!!!! Clap clap clap!!!

sábado, 26 de setembro de 2009

Diário de um vendedor de armas: rajadas e miragens

Journal Intime d’um Marchant de Canons, do jornalista francês Philippe Vasset, especialista no assunto, narra, em primeira pessoa, a história de um fictício senhor da guerra que passeia entre personagens – empresas (Dassault Aviation, Thales Group), Estados (França, Líbia) e episódios reais esdrúxulos, entre os quais um piloto de guerra (chamado de Mr. X) que, ainda na ativa, é destacado pelo Estado francês para treinar seus homólogos nos países clientes. Os aviões deste episódio também são fabricados pela francesa Dassault, mas o cliente não é o Brasil. Tratam-se de caças Mirage, não tão “modernos” quanto os Rafale comprados afinal ou não pelo nosso pa-tro-pi.

Aliás, dois Rafale acidentaram-se nesta quinta-feira no mar Mediterrâneo. Um piloto felizmente se salvou, mas o segundo, que não conseguiu ejetar-se a tempo, resta desaparecido. O acidente talvez faça com que o assunto dos caças retorne às manchetes dos jornais brasileiros.

Será que agora, depois do acidente, teremos ao menos direito a um “descontão”? Um Real aí é um Real, um Real aí é um Real. Um Real! Pô Sarkô, rola ao menos uma caixa de Moët & Chandon, vai. É dois Real.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Saint-Exupéry e o AF 447

Saint-Exupéry é conhecido, sobretudo, pelo Pequeno Príncipe, mas escreveu outros textos e romances maravilhosos, como Terra dos Homens, editado no Brasil inicialmente pela José Olympio Editora, com tradução primorosa de Rubem Braga. Neste livro, Saint-Exupéry narra as aventuras dos seus “colegas de linha”: Mermoz, Guillaumet (a quem ele dedica o livro), entre outros. A linha, no caso, era a rota aérea pela qual o correio era transportado. No caso, Toulouse-Casablanca-Dacar.

Esses homens não apenas asseguraram o transporte do correio aéreo, mas foram os primeiros a cruzar estas rotas. Depois de torná-las menos desconhecidas, os protagonistas do livro, sempre pioneiros, partiam para outras experiências : vôos noturnos, em hidroavião, sobre os Andes. Boa parte das aventuras do livro é relacionada a acidentes em que os pilotos se salvaram de forma miraculosa, inclusive o próprio autor que, em pane no deserto do Saara, é salvo por nômades no exato instante em que começava a sentir os sintomas (conhecidos em teoria por todos os pilotos que cruzavam aquele oceano de areia) da terrível morte por desidratação. Quem leu Terra dos Homens e o Pequeno Príncipe percebe que este livro é fortemente inspirado no acidente descrito naquele.

Todos os pilotos citados aqui - e quase todos os citados por Saint-Exupéry- depois de terem sido salvos várias vezes de forma incrível, acabaram finalmente por morrer em missões, inclusive o próprio Saint-Exupéry. O desaparecimento do avião do qual decolou da Córsega em 31 de julho de 1944 é, até hoje, cercado de mistério. Tal como o vôo Air-France que partiu do Rio no dia de 31 de maio de 2009 com destino a Paris.

Terre des Hommes

Capítulo 2 – Os Companheiros
(sobre Guillaumet)

“Já se haviam passado cinqüenta horas que você desaparecera numa travessia dos Andes, durante o inverno. Voltando do fundo da Patagônia, fui ao encontro do piloto Deley, em Mendoza. E nós dois, durante cinco dias, esquadrinhamos aquela confusão de montanhas, sem descobrir coisa alguma. Nossos dois aparelhos não bastavam. Parecia-nos que cem esquadrilhas, navegando cem anos, não acabariam de explorar aquele enorme maciço cujos picos se erguiam até sete mil metros. Havíamos perdido toda a esperança. Os próprios contrabandistas, os bandidos que lá embaixo fazem um crime por cinco francos, recusavam-se a se aventurar nos contrafortes das montanhas. “Arriscaríamos nossas vidas” - diziam eles. “Os Andes, no inverno, não devolvem os homens”. Quando eu e Deley descemos em Santiago os oficiais chilenos também nos aconselharam a suspender as pesquisas. “É o inverno. Esse companheiro de vocês, se sobreviveu à queda, não sobreviveu à noite. A noite, lá em cima, quando passa sobre o homem transforma-o em gelo”. E quando eu novamente me infiltrava entre os muros e os pilares gigantescos dos Andes já sentia que não estava mais procurando você: velava o seu corpo, em silêncio, numa catedral de neve.

Afinal, depois de sete dias, quando eu almoçava, no intervalo de dois vôos, num restaurante de Mendoza, um homem empurrou a porta e gritou...oh, apenas isto:
- Guillaumet... vivo!
E todos os desconhecidos que ali estavam se abraçaram.

Dez minutos mais tarde eu partia com dois mecânicos, Lefebvre e Abri. Quarenta minutos depois descia ao longo de uma estrada, tendo reconhecido, não sei como, o carro que o conduzia para não sei onde, nos lados de São Rafael. Foi um belo encontro: choramos todos e esmagamos você em nossos abraços, vivo, ressuscitado, autor de seu próprio milagre. Foi então que você exprimiu, na sua primeira frase inteligível, um admirável orgulho da espécie: “O que eu fiz, palavra que nenhum bicho, só um homem, era capaz de fazer...”

terça-feira, 5 de maio de 2009

La Place des Clichés: Extratos - Parte II

... Conseguir um apartamento também é uma ocasião para abrir uma garrafa de champanhe. Lembro-me no dia em que eu fui fazer uma visita em um apartamento recentemente anunciado, em um lugar bom e com um preço acessível. Como tinha uma fila enorme na porta, pude identificar o imóvel, mesmo de longe, antes de conseguir verificar o número do prédio. A fila na calçada estava menor do que eu esperava: cerca de 10 metros somente. Depois porém percebi que me enganara já que a fila subia pelas escadas até o sexto andar, onde ficava o apartamento. Felizmente, não tive que esperar muito, pois o primeiro da fila logo desceu avisando que o apartamento já havia sido alugado.

A conversa fiada está boa mas agora tenho que ir, pois tenho um encontro marcado com um amigo francês muito pontual. O encontro é às 8:00 e como já são 8:30, e quero ver se chego na hora. Ele passou algumas semanas no Rio e me trouxe um presente e também algumas histórias para contar. Uma delas, ele já me adiantou: ele foi à praia no Posto 9 e fez um montão de amigos no mesmo dia, e todos o convidaram para jantar ou almoçar. Ele porém estava frustado por não ter podido honrar nenhum destes convites, que não vieram acompanhados nem de endereço, nem de telefone.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

La Place des Clichés - Extratos

... O sistema de transporte público parisiense é fantástico, mas não funciona vinte e quatro horas por dia. É tão eficiente e tão utilizado que, quando faz sua interrupção diária, em torno de uma hora da manhã, deixa os boêmios e os trabalhadores noturnos a ver navios. Para estes, restam algumas opções: esperar a retomada da circulação do metrô, por volta das cinco e meia da madrugada, pegar o ônibus noturno, simplesmente andar e, mais recentemente, ir de Velib. A opção mais radical é pegar um taxi, ou melhor, tentar. Ah, os taxis parisienses. Se existe algo indelével nesta cidade, ei-lo. E não se trata de uma mera implicância de um carioca acostumado com o problema inverso, ou seja, taxistas que às vezes chegam até mesmo a sair no tapa disputando passageiros em plena Av. Nossa Senhora de Copacabana. A virtualidade dos taxis parisienses é reconhecida internacionalmente !

Os taxis aqui são modernos, muitas Mercedes-Benz com banco de couro, GPS e em um sistema de luz que indica se o taxi está disponível. É fácil ver, na noite de Paris, taxis circulando com a luz apagada, o problema é achar um taxi com a luz acesa, vazio. Para ter sucesso nesta empreitada, é necessário se deslocar até um dos pontos de taxi e esperar na longa fila. Neste caso, vale a pena ter à mão um livro (a Odisséia de Homero vai bem, tanto pelo tamanho quanto pelo tema, que combina) e uma cadeira de praia. Arrependi-me amargamente de não ter trazido a minha do Rio.

Uma outra possibilidade é achar uma das raras partes da cidade onde a probabilidade de um taxi vazio passar é diferente de zero. Mesmo sem conhecer bem a cidade, até que é bem fácil identificar estes lugares, que vão estar pontuados por pessoas na calçada ou andando na rua pela contramão, olhando ansiosamente para os carros que passam, com o braço e o dedo indicador esticados, ou ainda, atravessando a rua correndo sem olhar para os lados (não, não é tentativa de suicídio, estão apenas tentando alcançar um taxi que passa no sentido inverso). Quando um taxista infeliz para entre dois grupos não muito distantes entre si, em geral sai briga e o taxista acelera, deixa a pancadaria rolando e pega o cliente que inevitavelmente encontrá alguns metros mais à frente.

No entanto, às vezes vê-se um taxi vazio e, com mais um pouco de sorte, é possível abordá-lo antes de outros clientes. O golpe de sorte final terá acontecido se o seu destino - que invariavelmente será objeto de curiosidade do taxista antes da porta se abrir - convier a este. Na primeira vez que consegui um taxi, fiquei tão feliz que ao chegar em casa comemorei com champanhe. Nacional, é claro...

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Achados e Perdidos – Parte III : Roubado?

Ato final

Dusseldorf, Inverno 2009. Coloco a carteira no bolso traseiro da calça jeans e com pressa dirijo-me à estação de trem. Meu irmão me acompanha durante os 15 minutos de caminhada. Um pouco antes de embarcar, tateio o bolso e não sinto a carteira. Procuro na mochila, nos bolsos do casaco, mas apenas por desencargo, pois tinha a certeza de que a havia colocado no bolso traseiro da calça. Impossível saber ao certo o que ocorrera : se ela simplesmente caíra do bolso, ou se me fora subtraída por um exímio batedor de carteiras.

O trem partiria em poucos minutos. Despeço-me do meu irmão, que corre para refazer o caminho. Tínhamos a esperança de que a carteira pudesse ter caído na escada do prédio ou no próprio apartamento onde eu havia passado a noite.

Sento-me no trem e faço um esforço para não pensar nos 2 cartões de crédito, no cartão do banco, na Carte Vitale, no Titre de Séjour e nos 200 euros perdidos. Algum tempo depois meu irmão me ligaria para dizer que, infelizmente, ele não encontrara a carteira.

Durante a viagem de volta aproveito para cancelar meus cartões de crédito. E torço para não ser controlado pela polícia, pois apesar de estar com o passaporte, a falta do Titre de Séjour, que acabara de perder, poderia me causar problemas.

Ao chegar em Paris vou imediatamente à polícia fazer uma declaração que certamente seria necessária para a demanda de segunda-via do meu titre de séjour, cuja renovação estava marcada no dia seguinte. Chega a minha vez, explico o ocorrio ao policial, que me pede para precisar se a carteira fora perdida ou furtada. Explico que não sei. Ele no entanto precisa de uma definição. Opto pela segunda opção e obtenho uma declaração de furto.

No dia seguinte consigo renovar sem problemas o titre de séjour. Alguns dias depois chegariam os novos cartões de crédito, o que faria novamente de mim um cidadão nesta terra. Com o visto renovado, ficaria faltando apenas refazer a Carte Vitale que, juntamente com os 200 euros, seria o inconveniente maior da perda.

Algumas semanas se passam e, ante a falta de coragem para enfrentar a burocracia francesa, vou empurrando com a barriga a solicitação da segunda-via da Carte Vitale, o que finalmente se mostraria uma boa escolha quando, num belo dia, recebo um envelope proveniente da Alemanha, cujo conteúdo me surpreenderia: todos os documentos que estavam na carteira perdida, incluíndo cartões de crédito e também a Carte Vitale. Só faltavam mesmo os 200 euros. Mas aí, já seria querer abusar muito da sorte . . .

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Achados e Perdidos - Parte II: Achados

Ato IV

Paris, Inverno 2009. Hélio Penido de passagem por Paris me convidara para comer um cassoulet em um pequenino restaurante bem típico, chamado Au Bon Saint-Pourçain, cujo dono faz também papel de cozinheiro e de garçon e cuja barriga tem dimensões inversamente proporcionais às do restaurante. Gentil ao extremo, Penido convidara também uma amiga minha, recém conhecida.

Após o jantar, Penido, cuja amizade teve início com meu pai, nos convida para tomar champagne em um bar no Boulevard Saint Germain que ele frequentava nos anos 70. Cristina e eu gostamos da idéia, desde que fossemos nós quem o convidasse, e não o contrário. Sobretudo ela, que já estava constrangida por ter sido convidada para o jantar.

No bar, dou o famoso golpe de pedir licença para ir ao banheiro, e aproveito para pagar o champagne, o que deixa ambos realmente contrariados. O bar fecha e passamos ao bar do lado, com o pretexto de que a Cristina queria absolutamente pagar algo também naquela noite. Todo pretexto é válido, e mudamos de bar. Nossa despesa é porém modesta, pois já era tarde e trabalhávamos no dia seguinte.

Despeço-me de ambos, que decidem pegar um táxi. Afirmo minha intenção, no momento sincera, de voltar para casa de Velib. Apesar da curta distância e da determinação expressa um minuto antes, o frio me faz desistir da bicicleta. Preguiçoso, resolvo pegar também um táxi. Pago a corrida, que durara pouco mais de 5 minutos e, ao descer do carro, quase piso em uma carteira de couro preta.

Subo para meu apartamento e tenho o mesmo reflexo do sujeito que achara a minha carteira no Champs Elysées: vasculho totalmente o objeto a procura de um telefone ou de um endereço. Minha busca é porém em vão. Alguns euros, vários cartões e outros documentos de uma jovem e bonita menina, porém nada de telefone ou endereço. Com meu reflexo de pesquisador, faço uma pesquisa pelo seu nome no Google. Tento inclusive o Facebook, mas nada. Insisto uma segunda vez e faço nova busca da carteira: tiro tudo de dentro, sob pena de nunca mais conseguir colocar de volta na mesma ordem os documentos que verifico novamente, um por um.

Um sorriso se desenha em meus lábios quando vejo um R.I.B (relevé d'identité bancaire), cujo endereço era o do imóvel colado ao meu. No entanto, o nome que constava neste documento era outro. Diferentes pessoas. Sem melhor, torço para que morem juntos ou ao menos para que se conheçam, mais do que provável.

Penso nas caixas de correio, que em Paris em geral são fechadas à chave, e que ficam no hall de entrada dos prédios que, aqui, ao contrário do Brasil, quase nunca têm porteiro 24h por dia à disposição e, por isto, são em geral dotados de um sistema no qual digita-se um código que destranca a porta. Apesar do cansaço e das poucas chances de poder acessar o imóvel sem o tal código, a ansiedade é grande, e desço com o intuito de depositar a carteira na caixa do correio. Para minha sorte - e sobretudo para sorte da menina que a perdera - seu prédio dá livre acesso às caixas do correio.

Olho as várias dezenas de nomes e finalmente acho, com grande prazer, o nome correspondente ao R.I.B encontrado na carteira alguns minutos antes. Pela abertura destinada à correspondência, enfio a carteira com exatamente tudo o que havia dentro. Sinto um misto de alívio e felicidade, e uma sensação de ter feito uma boa ação. E lembro-me do sujeito que havia encontrado a minha carteira 2 anos antes no Champs Elysées.

Ato V

Paris, primavera 2009. Convido uns amigos para um apéro em meu modesto studio para, em seguida, irmos jantar no Chez Gladines, que fica pertinho de onde moro, na rue du Champ de l'Alouette, quase na esquina da rue de la Glacière, perto da estação de metrô de mesmo nome.

Estamos caminhando pela minha rua, rumo à Butte-aux-Cailles, onde fica o concorrido restaurante basco, quando passa por nós, pela calçada, um patinador, qual um T.G.V. No exato momento em que ele nos ultrapassa, deixa cair algo, que uma pessoa abaixa para pegar. Uma carteira de identidade. Gritamos, assoviamos. Inútil, o sujeito, que já se distanciara bastante, não nos escuta. Me ofereço para ficar com o documento com o intuito de o enviar pelo correio ao serviço de Achados e Perdidos de Paris.

O jantar termina muito bem - como sempre, diga-se de passagem. Retorno para casa. Quando chego, lembro-me do problema da identidade encontrada algumas horas antes. Resolvo procurar o patinador no Facebook. Uma única pessoa com aquele nome, e pelas fotos, a mesma que perdera o documento. Bingo! Envio uma mensagem apenas para garantir: “Vous avez passé en rouler à la rue du Champ de l'Alouette et vous avez laissé tomber votre CI. Une amie a réparé, on vous a sifflé et on vous a crié, mais vous étiez déjà trop loin. Votre CI est chez moi au 13ème et je peut vous l'envoyer par la poste si vous voulez. Amitiés”

O patinador responde pela manhã, algumas horas depois, também pelo Facebook: “ C'est super gentil, je l'ai cherchée partout. Je vous donne mon adresse, j'habite 21 rue des Tanneries. Encore un très grand merci !”

Ora, este endereço não apenas fica a menos de 200 metros do meu atual apartamento, como também foi exatamente no 21 rue de Tanneries onde morei durante quase 5 anos, até setembro do ano passado! Eu respondo: “Alors je vais la déposer dans votre boite aux lettres, car j'habite à côté. En plus, j'ai habité pendant 5 ans au 21 rue de Tanneries! Incroyable!!”

O patinador responde: “Le hasard est vraiment incroyable. Merci infiniment !” O acaso é incrível, ele diz, agradecendo mais uma vez.

No dia seguinte, rumo ao imóvel onde morei durante anos, penso comigo: “Acaso?”

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Achados e Perdidos - Parte I: Perdidos

Ato I

Madrugada de primeiro de janeiro de 2004. O taxi para na Rue de la Glacière. Nos despedimos com mais um longo beijo. Esta primeira noite duraria cinco anos. Laure desce do carro e desaparece na portaria. Despeço-me com a certeza de que a veria outra vez, o que mitiga a frustração de não estar, naquele momento, no mesmo elevador em que ela. Sigo para minha casa, o famoso apartamento de Montrouge.

Montrouge, tarde de primeiro de janeiro de 2004. Boca seca, enjoo e dor de cabeça. E uma sensação de vazio pela mochila com CDs, agenda e várias outras coisas que eu esquecera algumas horas antes no taxi que me deixara em casa.

Ille-de-France, algum dia de janeiro de 2004. Alguém me fala sobre o serviço de Objets Trouvés de Paris, ao qual me dirijo, e onde recupero a mochila com exatamente tudo que dentro havia.

Ato II

Paris, primavera 2007. Estação Charles de Gaulle-Étoile. Minha primeira visão ao chegar ao nível da rua é o Arco do Triunfo. O tempo está quente, tiro o paletó de lã, não sem antes verificar que minha carteira estava no bolso interno do paletó. Sigo pela Av. de la Grande Armée, vejo a numeração progredir de forma muito lenta. Para chegar ao meu destino, irei levar outros 10 minutos. Se tivesse descido na estação Porte Maillot eu chegaria mais rápido. Mesmo assim, resolvo continuar a pé.

Tateio o paletó para verificar novamente a presença da carteira, que há 10 minutos atrás estava no meu bolso. Tateio todos os bolsos. Inútil, ela já não estava mais comigo, para meu desespero. Como o trecho da Av. de la Grande Armée que eu percorrera estava vazio e escuro, decido refazer o caminho no sentido inverso, com a certeza de que encontraria a carteira pelo chão.

Estou prestes a chegar no local exato em que eu havia verificado a carteira pela última vez, e nada dela. As chances de a encontrar pelo chão tornam-se praticamente nulas. No exato momento em que pensava nisto, meu celular toca.

Número desconhecido. Tenho a certeza, não sei como, de que é algo relacionado à carteira. Dito e feito. Meu interlocutor explica ter acabado de a encontrar. Estamos a apenas alguns passos de distância. Vou ao seu encontro. Ele explica ter vasculhado a carteira em busca de um número de contato, que ele achara em um cartão de visitas.

Novamente, recupero todos meus documentos, inclusive meu titre de séjour, sem que nada estivesse faltando, mesmo os euros. Não sei como agradecer, convido a pessoa para jantar com meu pai, que está me esperando em um restaurante, mas a pessoa já tinha um compromisso. Digo que ligarei um dia desses então para refazer o convite, o que, como bom carioca, nunca cheguei a fazer.

Ato III

Inverno 2007-2008. Após 3 horas de TGV, vindos de Paris, chegamos em Grenoble, Laure e meu amigo Rodrigo, vindo diretamente de Recife. Iríamos passar uns dias nos Alpes, numa estação de esqui.

Um casal de amigos da Laure nos espera na estação de trem. Ao botar as malas no bagageiro do carro, percebo que, no afã de tirar as pranchas de snow board do trem, esquecera neste minha mochila com lap-top, carteira com dinheiro, cartão de banco, cartão de crédito, cartão de seguro saúde, e mais ainda, passaporte, titre de séjour, máquina fotográfica e óculos escuros.

Sinto uma ensação horrível, como se eu tivesse caído em um abismo. Corro, desesperado, para a plataforma, mas o trem já havia partido. Desembarcáramos há 15 minutos. Olho em volta e não vejo ninguém. A pequena estação já estava fechando, pois aquele fora o último trem.

Encontro não sei como, no final da longa plataforma, o escritório do responsável pela estação. Falo sobre a mochila, com a voz trêmula. O responsável me diz que não há nada a fazer, pois antes do trem ir para o depósito, um funcionário verifica se nada fora esquecido, e naquela noite nada havia sido encontrado. Insisto para que ele tente localizar a mochila no depósito. Não apenas porque tinha uma intuição de que a mochila ficara no trem, mas sobretudo porque esta opção era minha única esperança e eu não tinha nada a perder. Minha intuição se confirma quando meu interlocutor liga para o depósito e, por intermédio de um colega, localiza a mochila no local por mim descrito. Eu, no entanto, só poderia recuperar a mochila alguns dias depois. Mas estava tudo bem, tudo maravilhoso.

Volto, alguns dias depois, para Grenoble com o intuito de recuperar a mochila, o que faço sem problemas e sem que nada, absolutamente nada, estivesse faltando.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Jongo da Serrinha: de Madureira para o Mundo

Quando cheguei no Rio em agosto de 2003 foi uma alegria só. Depois de quase um ano em Paris – continuação dos quase 30 vividos até então na cidade de Jobim - rever família e amigos foi uma sensação maravilhosa.

Mas deixo para uma outra oportunidade a família e os amigos, que aliás moram no meu coração, e passo direto para a Lapa, mais precisamente, rua do Lavradio, rua que eu já frequentava nos idos de 95, quando trabalhava no Centro. Nesta rua fica o Rio Scenarium, um sobrado de três andares de pé-direito alto, vazados sobre o palco no térreo, e que além de antiquário e centro cultural, está na moda. Foi lá que vi pela primeira vez, em agosto de 2003, Luciane Menezes e Pau da Braúna, justamente por ocasião destas minhas primeiras férias no Brasil.

Meu camarada Tatá (ou será que foi a Ana?) havia me perguntado “você conhece Luciane Menezes e Pau da Braúna não então tem que conhecer vai se amarrar”. Então tá. Não deu outra. Os shows eram sempre aos sábados, no Rio Scenarium, e em quatro dos cinco finais de semana que passei no Rio estive no centro cultural para ver o grupo. O único sábado em que estive ausente, com uma dor no coração, foi para ver o autor de A Tábua de Esmeralda se apresentar em um daqueles armazéns da Praça Mauá.

Durante minha juventude vi aos poucos o centro do Rio se revitalizar. Houve um tempo em que a noite escura da Lapa tinha apenas o Circo Voador como único ponto de luz. Depois vieram a Fundição Progresso, o Semente, e os antiquários da Lavradio. Um pouco depois, outros sobrados seriam restaurados: Carioca da Gema, Centro Cultural Carioca, Dama da Noite, entre outros.

Um pouco antes de vir para Paris, havia me tornado fã de carteirinha do Cordão do Boitatá, que além de um carnaval de rua, fazia um show maravilhoso todas as segundas-feiras no Carioca da Gema. Fiquei amigo da rapaziada pois o lugar era pequeno e o pessoal curioso queria saber quem era aquele maluco que há dois meses batia ponto semanalmente.

Abrindo um parênteses: outro dia o Pedrinho Miranda, que faz parte do Cordão do Boitatá, esteve em Paris com a Teresa Cristina. Fizeram um show maravilhoso no Cabaret Sauvage, onde eu estava trabalhando como DJ. Tivemos a oportunidade de conversar um pouco e eles ficaram super felizes em saber que, nas festas que animo, uso muito os discos do Boitatá, da Teresa Cristina (com quem o Pedro também toca), bem como o disco da Luciane Menezes e Pau da Braúna.

Mas voltando ao Rio Scenarium. Acabo de chegar em casa vindo do Carreau du Temple, onde fica o Espace Brésil, um dos principais eventos do Ano do Brasil na França. Muita gente boa tem passado por lá. E hoje tive o privilégio e o prazer de dançar, em pleno Marais, no coração de Paris, jongo, ciranda, maracatu, xote, baião, quadrilha, côco, côco de roda, samba, bumba-meu-boi, etc.

Um casal de jovens dançarinos (talvez mais para adolescentes do que jovens), que eu havia reparado já no Rio Scenarium em 2003, ensinava os passos básicos, e o público seguia, bem ou mal, a coreografia. Provavelmente de origem humilde, foi legal vê-los em Paris.

No Morro da Serrinha, em Madureira, reside uma das comunidades descendentes de escravos que souberam muito bem preservar suas raízes, e o Jongo teve papel importante. E isto, graças ao trabalho de Mestre Darcy do Jongo, falecido no final de 2001, de sua mãe, Vovó Maria Joana Rezadeira, de Tia Maria do Jongo, ainda ativa, e também da geração mais nova, como Luciane Menezes e Marcos André, que se apresentaram em Paris e que também fazem parte do Centro Cultural Jongo da Serrinha.

Com vocês, no Carreau du Temple, uma pequena amostra do Jongo da Serrinha, de Madureira para Paris, ou melhor, para o mundo.

Paris, 01/09/05

domingo, 22 de março de 2009

Gênova 2001 - Post Scriptum: Escola Diaz

Na manhã da segunda 16 de março, dia da publicação de Gênova 2001 , o texto anterior a este, eu viajara para Bruxelas, onde assistiria a um congresso. Durante os 82 minutos que o T.G.V. leva para cobrir os 300 km que separam Paris-Nord de Bruxelles-Midi, eu trabalhara novamente o texto e o deixara quase pronto para publicá-lo mais tarde.

Sabia que no local do congresso haveria acesso à internet, mas não conseguiria publicar o texto durante o dia, que fora longo e cansativo. O trem partira às 8 da manhã de Paris, e eu deixara o centro de convenções em Bruxelas às 8 da noite. A solução seria publicar o texto à noite, mas eu já estava atrasado para um jantar com Giuliano e Laure, amigos queridos que haviam me recebido um mês antes. Era o único momento para vê-los, já que voltaria no dia seguinte para Paris, diretamente do congresso.

Depois de 40 minutos de metrô, chego finalmente na casa dos meus amigos, quase às 9 da noite. O reencontro entre um brasileiro e um italiano que não se viam há um mês produziu uma torrente de palavras de ambas as partes que ia muito além da capacidade humana de compreensão. Cacofonia e caos totais. Foram necessários alguns minutos para percebermos que não estávamos entendendo nada do que o outro dizia, concentrados que estávamos na necessidade vital de expressarmos, em 5 minutos, todos os acontecimentos das últimas semanas.

Finalmente as interrupções recíprocas diminuíram e conseguimos nos comunicar. Falei sobre o espetáculo Gênes 01, baseado no texto de Fausto Paravidino, que eu assistira alguns dias antes na região de Paris, tema do post no qual eu trabalhara no final de semana e no T.G.V., e que eu deveria publicar em no máximo 3 horas, caso não quisesse perder o prazo limite de segunda-feira (o Contramão surgiu em dezembro de 2008, com um texto semanal, sempre às segundas-feiras).

Mal eu começara a falar sobre o espetáculo e Giuliano me interrompeu de novo para contar que ele havia estado em Gênova em julho de 2001, partindo em seguida buscar as fotos que ele fizera na ocasião. Depois da Butte-aux-Cailles, “coincidência”em Bruxelas.

Ao chegarmos no restaurante, Giuliano começou a contar com detalhes a sua história. Quando ele chegara em Gênova no final do primeiro dia de conflitos, ele se depararia com um clima bizarro, estranho. Algo fora do normal havia acontecido, mas ele não sabia o que, pois havia feito o trajeto de carro, sem rádio, e não ficara sabendo dos acontecimentos que culminariam na morte de Carlo Giuliani. Ao procurar explicações para o clima de guerra, Giuliano conheceu um morador da cidade, que ofereceu hospedagem. Caso contrário, ele teria ido acampar na Escola Diaz, e talvez fosse mais um dos espancados pela polícia.

Giuliano me contou então sobre o massacre da Escola Diaz, um dos episódios que mais me chocara na peça. No momento em que dezenas de policiais invadiram a escola para massacrar os manifestantes que lá estavam acampados, Giuliano estava por acaso em um bar próximo. Durante o massacre, ninguém entrava e ninguém saía da escola. Duas horas de terror. Giuliano contou que algumas pessoas entraram no bar, desesperadas e impotentes, pedindo socorro pelos massacradros. O clima ficou tão tenso e pesado que o dono do bar local fechou as portas do local para impedir que as pessoas saíssem e entrassem em conflito com a polícia.

Giuliano falaria mais tarde com algumas pessoas que estavam ao redor da escola, que ouviram, sem poder fazer nada, os gritos de terror que vinham de dentro, e que viram, chocadas, a centena de feridos saindo, 30 dos quais de maca, alguns cobertos, como se fossem cadáveres.

Giuliano contou ainda que, ao assistir mais tarde as informações transmitidas pela televisão sobre os acontecimentos do dia, teve impressão de que estavam falando de um outro planeta, tal era a distância entre a versão dos fatos e que estava realmente acontecendo.

Terminamos o jantar e as histórias. Fomos para casa, exaustos após um dia longo de trabalho, e com um gosto de revolta e impotência na boca por causa de Gênova. Chegamos em casa alguns minutos antes da meia-noite. O texto longo e com erros de ortografia e gramática precisava de um trabalho de revisão que demandaria um tempo superior aos poucos minutos que me restavam para que fosse publicado dentro do prazo de segunda-feira. Optei em publicar o texto mesmo assim.

Além disso, os fatos que Giuliano havia acabado de relatar precisariam ser publicados, juntamente com algumas de suas fotos. Surgia assim a idéia do post de hoje, um post scriptum ao texto daquele dia 16.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Gênova 2001

Gênes 01. Espetáculo teatral que descreve a violentíssima repressão feita pelo Estado italiano aos manifestantes presentes na cidade de Gênova em julho de 2001, durante a cúpula do G-8. A peça, que me chocou fortemente, resgata o episódio durante o qual Carlo Giuliani, de apenas 23 anos, foi morto pela polícia, que deixou também centenas de pessoas feridas, muitas gravemente. Traz também informações que não lembro de ter visto na mídia, o que não me surpreende, ao contrário.

Foram apenas três apresentações na região parisiense, todas em Blanc-Mesnil (Seine Saint-Denis, o temido "neuf trois"). Apesar de estar com uma ótima ocupação, o espetáculo merecia lotação completa. Infelizmente, parte do público potencial deixou de vir pelo fato do teatro ser fora de Paris, ainda que não longe. Por exemplo, da Cité Internationale Universitaire de Paris, leva-se apenas 40 minutos de porta à porta até o espaço cultural Le Forum, onde fica o teatro, que fica está a 10 minutos a pé da Gare de Drancy, a estação de trem mais próxima, toda em estilo Art Déco e a apenas 20 minutos da estação Paris Nord.

A peça é particularmente recomendável aos que se interessam por direitos humanos ou pela capacidade da mídia em distorcer ou ocultar certos fatos. Confesso que desconhecia vários acontecimentos do episódio de Gênova, por exemplo, que centenas de lugares da prisão da cidade foram criados um pouco antes do encontro, com o deslocamento dos presos para outras cadeias próximas. Da mesma forma, os hospitais foram preparados previamente para receber um número maior de pessoas que o habitual...

A peça também confronta as diferentes versões dadas pela responsabilidade à morte do rapaz, e narra dois episódios fortíssimos de tortura. O primeiro, a invasão de uma escola onde estavam alojados 400 manifestantes, dos quais 30 saíram de maca. O objetivo da ação policial era a recuperação de tudo que fora filmado ou fotografado do conflito pelos manifestantes. Foram duas horas de espancamento, ouvido de fora da escola. O segundo episódio de tortura foi pior, pois durou vários dias, dentro da prisão, sem testemunhas. Apenas o depoimento dos manifestantes presos e torturados na cadeia.

O espetáculo se encerra justamente com a leitura de parte destes depoimentos. Os algozes batiam e torturavam, e isto muitas vezes entoavando hinos nazistas. Além da tortura, eu desconhecia a premeditação, a suspensão de leis constitucionais, o isolamento de uma parte da cidade, manifestantes violentos que na verdade eram agentes da polícia ou estavam em conivência com esta, entre outros fatos.

A montagem do espetáculo usa vários recursos multimídia, sobretudo projeções de vídeo com cenas do conflito. Os 5 atores, ótimos por sinal, usam um texto que, ao mesmo tempo em que conta a história, mostra como a mídia conseguiu amenizar, esconder ou distorcer os fatos. O pior do episódio de Gênova ao meu ver, além da tortura, foi a premeditação em gerar um conflito violento. Com um mapa da cidade projetado no telão, os atores explicam como a passeata de sábado, que até então era pacífica, foi literalmente encurralada. A unica possibilidade para os manifestantes era seguir adiante. O trajeto fora escolhido pela polícia, que surpreendeu os manifestantes ao barrar a única passagem da passeata. E isto para provocar o conflito.

Imaginem um público saindo de um Maracanã lotado, passando pelas ruas de Olinda. Imaginem que esta multidão está em uma parte da cidade em que a única passagem é sempre avante, e que de repente esta única passagem fosse bloqueada por policiais armados para um combate de guerra e ainda por cima lançando gás lacrimogênio? Foi exatamente o que aconteceu e o que gerou uma onda de reações violentas por parte dos manifestantes em Gênova.

As pessoas à frente da manifestação não tinham para onde correr do gás, a não ser que a longa fila de centenas de milhares de pessoas que vinha atrás fizesse meia volta volver. Mas como? Impossível! Os que se encontravam mais para trás da passeata e não estavam sob o efeito do gás, e por isso se deram conta da premeditação da polícia, se revoltaram e reagiram. A polícia não podia recuar pois estava no local exatamente para bloquear a passagem, para punir, para bater, para reprimir duramente. Senão, ela não teria se posicionado onde se posicionou. Pior, a polícia botava lenha na fogueira, recuando e avançando, deixando a massa vir, para em seguida contra-atacar!

O espaço cultural Le Forum, é bonito e tem ótima infraestrutura, com destaque para o teatro. Esteve presente dando apoio um jornal de bairro chamado Vu d'Ici, muito bem feito por sinal, criado após as revoltas de 2005 na França, cujo centro fora exatamente na região onde estava sendo passado o espetáculo. Nada mais natural que o jornal apoiar a cultura, uma foma de mitigar os problemas sociais que estão por trás dos acontecimentos de 2005, que tiveram um outro ponto em comum com Gênova 2001: as informações veiculadas na mídia muitas vezes não condisseram com os verdadeiros fatos por trás do episódio.

Nas fileiras da frente e de trás à minha, vários jovens, certamente moradores do local, convidados explicitamente por isso, entre os quais possivelmente alguns protagonistas das revoltas de 2005. Enquanto eu chorava ouvindo as cenas de tortura, alguns destes jovens comentavam em alta voz a dureza daquelas cenas. Mas isto de forma um tanto o quanto blasé, muitas vezes até com risos ou ironia, revelando que muitos deles já estavam completamente endurecidos pela vida.

O primeiro dia da peça terminou com um debate entre o público, um sociólogo francês e o diretor da peça, que também atua. O sociólogo, ao citar o episódio da tortura do colégio, também explicou os motivos: a recuperação das imagens pela polícia, lembrando que hoje em dia é muito fácil de se registrar um evento com aparelho de telefone para em seguida, se divulgar as imagens pela internet. Destacou ainda que, por este motivo, a internet, simbolo maior da globalização, teria um papel positivo, no qual residiria, paradoxalmente, parte da força dos "no-global", como foram rotulados os manifestantes de Gênova.

Mas antes de chegar ao teatro, entre este e a gare de Drancy, sentado no último banco do lado direito de um ônibus, vejo passar pela calçada, a menos de um metro de mim, um casal de policiais, indo na mesma direção do ônibus, que seguia em baixa velocidade. A mulher estava com uma arma cujo calibre eu nunca tinha visto antes ao vivo, algo como uma espingarda prima-irmã da bazuca. Andava olhando para a frente, conversando com o outro policial, rindo, de forma displicente. Levava a arma no colo, como se fosse um bebê, apoiada nos dois antebraços, a parte da frente caindo para o lado esquerdo. E assim, em um dado momento, me surpreendo ao ver um canhão apontado para minha cabeça. A policial, sem nem sequer perceber, segue rindo, conversando. Penso num eventual acidente e no absurdo da situação. Comento com meu amigo, que vira a cena também. O ônibus para, os policiais nos alcançam e a cena se repete. Não sei se rio, se choro, ou se desço para dar uma bronca na policial. Melhor não, senão seria garde à vue na certa. Saco o celular para tirar uma foto. Tarde demais, o ônibus acelera. Perco o momento. Depois mais tarde, durante o debate, faço a associação entre esta cena e as palavras do sociólogo sobre as fotos de celular e o papel da internet que ouviria algumas horas depois.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Cité Internationale Universitaire de Paris

Se Paris fosse um relógio, a Cité Internationale Universitaire de Paris, seria o número 6. Esta imagem reflete não apenas a localização geográfica da CIUP, mas também dá uma boa ideia da sua dimensão. A Cité representa uma das mais importantes áreas verdes de Paris intra muros, juntamente com os Jardins de Luxembourg e de Tuilleries e com os parques Butte Chaumont e Montsouris.

Aliás, a CIUP fica bem em frente a este último. Uma verdadeira cidade dentro da cidade, com capacidade para hospedar mais de 5.000 estudantes de praticamente todos os cantos do planeta. Muito bem equipada com dois teatros, piscina, campos de futebol e de rugby, quadras de tênis, restaurantes, banco, correio, entre outros, a Cité é, além de tudo, um lugar belíssimo não apenas por causa do espaço verde, mas também do seu patrimônio arquitetônico.

A CIUP foi uma ideia de Émile Deutsch de la Meurthe, um industrial francês, executada por André Honnorat, Ministro da Instrução Pública. O objetivo era de mitigar o problema de moradia de jovens estudantes em Paris e, ao mesmo tempo, promover uma paz universal e fraternal, ao reunir jovens de praticamente o mundo todo em um só lugar. A convivência entre estudantes de diversas culturas, que futuramente ocupariam cargos políticos e econômicos de destaque, ajudaria na mútua compreensão das diferenças em prol de uma paz mundial.

Em meados de 1925 a Cité abriu suas portas para os primeiros estudantes , que hoje hospedam-se em 40 prédios, entre os quais a Maison du Brésil, com um belíssimo projeto de Lúcio Costa e Le Corbusier. Por lá já passaram vários brasileiros que posteriormente se tornariam figuras proeminentes.
A Casa do Brasil completa 50 anos neste ano de 2009, depois de ter sido classificada como monumento histórico pelo Ministério da Cultura francês. A Casa foi inteiramente renovada em 2000 graças a esforços de algumas instituições, como a CAPES, e de algumas pessoas, como a atual diretora da Casa, Inez Machado Salim, que também teve um papel fundamental para bloquear a tentativa de anexação da Casa à Fundação Nacional da Cité International Universitaire de Paris, que administra a Cité e as cerca de 20 casas anexadas.

A anexação da Casa do Brasil teria sido desastrosa por vários motivos. Os estudantes brasileiros por exemplo teriam muito menos chances de residir na Cité, já que as 100 vagas da Casa que hoje são destinadas exclusivamente a estes teriam sido colocadas à disposição dos estudantes do mundo todo.

Morar na Cité U foi para mim uma experiência fantástica, e tenho certeza de que esta opinião é compartilhada por todos aqueles que por lá passaram.

segunda-feira, 2 de março de 2009

"Coincidência" na Butte-aux-Cailles

Sexta-feira. Jantar com amigos na Butte-aux-Cailles, mais precisamente no Chez Gladines, lotado, para variar. Chegamos logo na abertura e pegamos a última mesa. Senão teríamos que esperar uma hora até o próximo serviço, o que pode até ser agradável, se não estivermos com pressa, pois temos a impressão de estar no Baixo Gávea, no Rio. Porém como estávamos com fome, termos chegado cedo foi providencial.

Depois da boa comida, do bom vinho e da simpatia tradicionais, sugeri tomarmos um digestif em um bar vizinho. Leandro, déjà habitué, e Rama, que estava conhecendo pela primeira vez a Butte-aux-Cailles, apesar de ser o mais antigo na cidade, toparam na hora.

Ao sairmos do Chez Gladines, a calçada já estava tomada pelos que aguardavam sua vez. Hesitamos em ficar, pois o ambiente estava agradável (para bom entendedor...). Mas finalmente fomos ao Le Merle Moqueur, que também estava ótimo, a despeito do telão transmitindo um jogo de rugby, o que me surpreendeu, pois não combina de forma alguma com o local.

Como sempre faço quando há um "novato" na área, falo da relação entre o nome do bar com o restaurante que fica bem em frente, Le Temps des Cerises, e com um outro bar também próximo, La Folie en Tête, todos situados no quartier da Butte-aux-Cailles. Falo da relação entre esta parte da cidade e a Commune de Paris, de Louise Michel e da música Le Temps de Cerises, que tem várias versões, a última feita pelo grupo de rock francês Noir Désir (para mais detalhes ver o primeiro post deste blog).

Neste exato momento, Rama recebe uma mensagem e descobre que duas amigas suas estão na Butte-aux-Cailles, cuja dimensão, para se ter uma idéia, equivale a menos de dois quarteirões de Ipanema. Ele liga para combinamos de juntarmos os dois grupos, e descobre que elas estão justamente no La Folie en Tête, o outro bar do qual eu acabara de falar a respeito. Ficamos de nos encontrar lá ou cá.

Terminamos nosso rum e fomos ao encontro do outro grupo. Dois minutos de caminhada e lá estamos. Rama nos apresenta à Wanda, que nos apresenta ao Jaques e à Mônica que, reparando meu sotaque característico, pergunta:

-Você é do Rio, não?
-Sim, meus pais são de São Paulo, mas nasci e fui criado no Rio.
-Você não é o amigo do Tatá, do Henrique e do Luís?

Eu mesmo. Ela disse ainda que tinha escrito para o Tatá um dia antes para pegar meus telefones com ele para combinarmos um encontro. Incrível! Mais uma simpática "coincidência" para a minha lista, que já vai grande. E a mesa de bar entre brasileiros, juntamente com a saudade, me transportam mais uma vez ao Baixo Gávea.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Domingo de Sol na Pont des Arts

Domingo de Sol na simpática Pont des Arts. Calor para brasileiro nenhum botar defeito. Apesar da brisa não ser tão refrescante como no litoral do nordeste e apesar do Sena não permitir mergulhos, como em Ipanema, o final de tarde foi vachement sympa.

Brasileiros, aliás, numerosos, reunidos ali, em frente ao Louvre, marcando espaço na véspera da comemoração de mais um aniversário da Queda da Bastilha. Recife, Fortaleza, Natal, Salvador, Sampa, Rio, BH, etc. Sudeste e Nordeste na fita, mas é claro que não faltou gente do Centro, Norte e Sul do país. Mas se falta a praia de verdade (Paris Plage é piada), a luz desta cidade não deixa a desejar.

Esplendor de final de tarde, ou melhor, de final de noite, já que o sol se pôs lá pelas 23h, quando o calor finalmente cedeu à brisa. Depois dos tradicionais tons de laranja, rosa e violeta, foi a vez de uma lua cheia e vermelha brindar os que formavam a maior roda da ponte, em sua maioria brasileiros, justamente em volta da nossa bandeira pendurada na murada de ferro e fosforescente à luz do sol poente. Mas não faltaram nossos anfitriões franceses nem los hermanos argentinos. Lembrando dos coreanos e de outros turistas de várias nacionalidades diferentes, que passavam babando e, muitas vezes, paravam para escutar uma das músicas mais ricas do mundo.

É bem verdade que poucos do grupo se deram conta dessa babação geral, pois estavam ocupados cantado, tocando, vendo o sol se pôr ou a lua nascer. Mas quem parou para prestar atenção pôde notar que boa parte dos que passavam em frente à roda sorriam e nos olhavam, com uma pontinha de vontade mal disfarçada de parar.

O Ziraldo tem ou não tem razão quando diz que o Brasil é o único país cujo nome já vem seguido de ponto de exclamação? Pois é:

- Tu viens d’où?
- Do Brasil.
- Ah, du Brésil!!!


Também pudera tanta admiração diante uma alegria contagiante e de um som tão bom, que ia de Paulinho da Viola a Luiz Gonzaga, de Zé Keti a João do Vale, passando por Jacksons e Chicos (Buarque, Science e César), Antônios (Jobim, Nóbrega) e Geraldos (Pereira, Vandré, Azevedo). Sem falar nas Claras, Elisas, Marias e Marisas, tantos outros brasileiros e brasileiras que daria para ficar um dia inteiro apenas escrevendo nomes. Som que unia cavaquinho à flauta transversa, violão ao sax, permeado sempre pela percussão tradicional do pandeiro, tamborim, ganzá e atabaque. Admiração diante de tanta alegria que emanava dos nossos pesquisadores dublês de músicos e dos estudantes cantadores brasileiros.

Admiração verdadeira diante da comunidade brasileira na França, que se associa algumas vezes para cantar e mostrar sua cara sorridente e, vale lembrar também, para fazer valer seus direitos quando a ocasião pede. Mas como acontece geralmente nesta cidade, o último metrô (literalmente, e não o filme de Truffaut) marcou o fim dessa antológica noite brasileira na França. Só mesmo o fim do transporte barato para colocar a brasileirada na cama tão cedo, perto de uma da matina, 7 horas após um tímido começo. Se não, certamente uma parte iria ficar até mais tarde – ou mais cedo, até o sol aparecer de novo na segunda.
Paris, 13 de julho de 2003

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Um Sábado em Bruxelas

Estou em Bruxelas, hospedado na casa de Laure e Giuliano, um querido casal franco-italiano que mora na cidade há 4 anos. O passeio mais interessante da viagem porém não foi pelas ruas, mas sim o que acabo de fazer na discoteca de Giuliano.
Impressionado com as dezenas de centenas de CDs, sobretudo de música clássica e ópera, começo a fazer perguntas. Descubro assim que a classificação dos CDs é feita por ordem cronológica, seguida por compositor e gênero, para finalmente voltar à cronologia. Impossível para um leigo como eu encontrar algo, a não ser por acaso, na sua esplêndida discoteca.

Ao refletir sobre seu sistema de classificação, começo a perceber como funciona a cabeça de um musicólogo: a cronologia é fundamental. Metralho Giuli com perguntas e começo a conhecer um pouquinho sobre a história da música clássica e de seus compositores. Lanço um desafio: coloco um disco atrás do outro, a esmo, e em menos de 10 segundos, a resposta, sempre com o nome correto do compositor: Brahms, Debussy, Mozart, Bach, Vivaldi, Verdi, Liszt, Tchaikovisky, Stravinsky, Scriaban, Bartók, etc. Alguns segundos mais e o nome da obra, na maioria das vezes exato. Impressionante!

Uma ínfima parte de um mundo completamente novo para mim. Ao final, estava mais do que convencido do seu conhecimento e impressionado pela sua cultura musical. E quanto mais conheço deste universo em geral, mas descubro que não conheço nada.

O sol brilha, coisa rara em Bruxelas, e aproveitamos para fazer um longo passeio a pé, de Ixelles até o Canal de Bruxelas, que comparamos ao de Saint Martin, em Paris, apenas para ironizar, pois esta parte da capital européia, com seus armazéns abandonados, é realmente feia.

Voltamos na direção de casa e paramos para almoçar numa peixaria que existe há 25 anos, mantida por um simpático casal franco-belga, Joel e Bill, que há dez anos decidiu abrir um pequeno bistrô dentro da própria peixaria. Giuliano cumprimenta Joel como se fosse uma amiga de longa data e logo sinto-me em casa. A cozinha americana acentua esta impressão. A comida e o vinho são deliciosos.

Retomamos o passeio com uma parada final em um café. Giuliano pede um chocolate quente, e diante das dez possibilidades de tipos de cacau, simplifico e peço um café expresso.

No dia seguinte, um pouco antes de partir, aproveito para gravar alguns discos e, ao mesmo tempo para mostrar ao casal o texto que fala a seu respeito. Como eles não falam português, leio uma tradução grosseira para o francês. No meio da leitura, Giuliano me interrompe para perguntar a hora do TGV. Olho o relógio e corro fazer a mala para não perder o trem.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Concerto para Mudar Destinos

Melhor do que assistir a um concerto com vários artistas de qualidade em uma só noite é fazê-lo sabendo-se que os recursos arrecadados irão para uma bela causa, que fica ainda bonita quando se vê, durante o próprio concerto, a estrutura de voluntariado formada para viabilizar o espetáculo.

Foi exatamente o caso da terça-feira passada, 3 de fevereiro, quando se reuniram Sanseverino, Abd Al Malik, Emily Loizeau, Mathieu Boogaerts, Juan Rozoff, Albin de la Simone, Julie B. Bonnie, Spleen, Jean-Marc Zelwer, DJ Shalom, Noun Ya e l’Hilaire Penda Quartet, que atraíram uma mulditão à prefeitura de Montreuil, cidade limítrofe de Paris.

As pessoas que trabalhavam na organização do espetáculo, maior parte voluntária, eram numerosas, haja visto o tamanho do evento e a quantidade de artistas, e davam uma boa ideia da extensão da rede de solidariedade. Além do trabalho de organização, o evento foi viabilizado graças à participação, sem cachê, de artistas que lotam salas como o Zenith por exemplo, pelo empréstimo do equipamento de som e pela cessão, também sem custo, do espaço.

E nada mais lógico que músicos apoiando este bonito projeto que se chama Jeunes Musiciens du Monde, iniciativa de um casal franco-canadense que juntou a paixão pelo país de Ghandi e pela música a um valor cada vez mais raro: a solidariedade.

Este casal fundou, em 2002, a escola Kalleri Sangeet Vidylaya, situada em um vale próximo a cidade de Dhawad, estado de Karnata, sudoeste da Índia. Durante o concerto, foi exibido um vídeo emocionante sobre a escola, totalmente mantida pelo projeto Jeunes Musiciens du Monde. Praticamente no meio da floresta, a escola recebe filhos de camponeses. A maior parte das crianças já trabalha duramente no campo e muitas vezes chega à escola com os sonhos completamente destruídos pela vida difícil que levam. A escola é gratuita e em regime de semi-internato. Os alunos são portanto alimentados e recebem, além do ensino convencional, cursos de yoga e de música tradicional. E é neste ambiente caloroso e com um certo conforto material, apesar da simplicidade rústica das instalações da escola, que a música surte seu maior efeito, ou seja, de resgatar a auto-estima, a confiança e a esperança de mais de uma centena de crianças.

Uma gota d'água no oceano, mas sem dúvida uma iniciativa muito bonita, que aliás se multiplicou na França e no Canadá, onde são mantidas outras escolas, num total de quatro para o projeto. Quatro gotas d'água no oceano. Mas tem também o Afroreggae, Vigário Geral, Rio de Janeiro, que apesar de independente e diferente do projeto Jeunes Musiciens du Monde, tem em comum com este o objetivo primordial de resgatar os destinos de crianças pobres. E felizmente há muitos outros projetos do gênero, no Brasil e no mundo. E de gota em gota vão se formando as ondas que, por sua vez, arrastam consigo outras gotas.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Neve em Paris II: is Climate Changing?

Cinco da matina e o despertador interrompe meu sonho de forma um tanto o quanto arrogante. Tenho pouco tempo para me arrumar, pois em 10 minutos um taxi estará me esperando na porta de casa. Na pressa, não abro a persiana, e só percebo a neve ao sair do elevador.

Terceira nevasca em Paris durante os dois últimos meses, faltando ainda dois outros para terminar o inverno. A primeira neve caíra ainda no outono, o que não acontecia há décadas. A segunda fora seguida de uma onda de frio, quando a temperatura na região parisiense chegara a 12 graus negativos, também raríssimo, mantendo a cidade branca durante uma semana inteira.

Hoje, a terceira neve preenche de branco minha varanda à medida que a tela do computador é preenchida por caracteres negros, trazendo, além da inspiração, atrasos em Orly e em Charles de Gaulle, e dificuldades de circulação em dezenas de cidades no norte da França.

No taxi me viera à lembrança os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, laureado com o Prêmio Nobel da paz, juntamente com Al Gore. Prováveis alterações no sistema climático da Terra devido à intensificação do efeito estufa. Furacões, secas, enchentes. Fenômenos naturais extremos cada vez mais intensos e frequentes. Y otras cositas más. Vai dar merda. Opinião compartilhada de forma cada vez mais consensual por vários cientistas, de várias áreas do conhecimento e do planeta. Que merda. Tomara que estejam errados. Toda unanimidade é burra. Agarro-me com toda força na sabedoria de Nelson Rodrigues como uma última esperança. No entanto, as neves em Paris me gritam a evidência das mudanças climáticas provocadas pelo Homem.

O dramaturgo cede lugar a Euclides da Cunha. Mas deixo de lado dicotomias e cisões cidade-campo e sertão-litoral. Abandono as interpretações do “fenômeno sócio-histórico-geográfico-antropológico do sertão-periférico”. Evito a estética de Glauber. Pessimista, penso na profecia de Antônio Conselheiro sem metáforas. O sertão vai virar mar. Um mar de areia? E o mar, invadirá o sertão?

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Chez Gladines

O Chez Gladines é um restaurante basco que fica na boêmia Butte-aux-Cailles e que serve uma comida farta e relativamente barata para os padrões parisienses. Seu cardápio é baseado em saborosos pratos e vinhos típicos da região sudoeste e do país basco. O ambiente é jovem, descontraído e barulhento. Guardando as devidas diferenças, o Chez Gladines é o meu Jobi em Paris.

O restaurante também é conhecido por suas saladas individuais servidas em bacias imensas e é muito frequentado pelos residentes da Cité Internationale Universitaire de Paris, onde fica a Maison du Brésil (que por sinal está completando 50 anos este ano) e outras 40 residências que, conjuntamente, reúnem cerca de 5.000 estudantes de quase todos os cantos do planeta.

É incrível como o restaurante consegue garantir um serviço simpático e eficiente, mesmo com apenas duas pessoas servindo e uma terceira no bar. Isto sem contar que o restaurante está sempre lotado, inclusive os corredores, o que dificulta ainda mais o trabalho dos pessoal da casa, que apesar de tudo, está sempre de bom humor e com o sorriso aceso. Lembro-me perfeitamente de uma das primeiras vezes em que estive no Chez Gladines, quando praticamente levei um pito do gerente na hora do até logo, pois eu me despedira com o sorriso desligado. É, parece que no tange os dentres à mostra, o pessoal da casa exige reciprocidade dos clientes. Tá certo.

O restaurante não faz reserva e nos dias mais cheios, uma mesa grande pode levar mais de uma hora para ser acomodada, o que não é nada se comparado a alguns restaurantes em Paris cujas reservas são feitas com meses de antecedência – só não me pergunte quais, pois eu, felizmente ou infelizmente, não frequento este tipo de lugar. No Chez Gladines é necessário deixar o nome no bar, e as pessoas são instaladas por ordem de chegada. Para se evitar a angústia da espera e para não precisar forçar o sorriso depois, o lance é prever a fome, ou ainda evitar os horários de pico, entre 20h e 22h3o, sobretudo se a mesa for para mais de 4 pessoas. Outra solução é simplesmente relaxar e ficar tomando uma cerveja na porta, com a rapaziada que lota a calçada, lembrando um pouco o Baixo Gávea - olhem aí mais um exemplo de comparação que não existiria sem a saudade.

Há um outro porém que pode desagradar aos que estão acostumados com os cafés de Paris, onde o simples consumo de um expresso permite que se permaneça o dia inteiro sentado na mesma mesa: no Gladines, ao retirar o prato, o garçom pergunta pela sobremesa e, face a uma negativa, propõe o tradicional café, trazendo a conta em seguida. Se o cliente insistir em ficar, ele explica gentilmente o óbvio, ou seja, que tem a maior galera esperando, faminta, a sua vez. Para quem prefere comer com calma, o lance é chegar perto do fechamento da cozinha - não me lembro dos horários da tarde, mas durante o jantar, a cozinha abre às 19h30 e fecha no mínimo à meia-noite, todos os dias, fora quarta e sábado, quando fecha à uma hora da matina, o que é bastante raro em Paris. Também não estranhe se você tiver que dividir a mesa, praxe do local que muitas vezes resulta em encontros interessantes. Ah, pagamento apenas em cheque ou dinheiro.

Quem vier a Paris só para ir ao Chez Gladines, para não haver fustração, como no caso do meu amigo Aldo, deverá se informar sobre o período de férias, por volta de julho e agosto, quando o restaurante fecha as portas, como boa parte do comércio em Paris.

Apesar dos pesares, o lugar paga a pena. Bom, sou suspeito para falar, pois passo lá pelo menos uma vez por semana, além de ter compelido gentilmente os cerca de 80 amigos que tive o prazer de hospedar em Paris, a irem conhecer o restaurante. E todos, sem exceção, curtiram muito o programa.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Simplesmente Cassis

O licor de cassis é bastante usado no Brasil para incrementar o creme de papaia - comum nas churrascarias rodízio - e também na França, misturado ao vinho branco ou ao champanhe, para se fazer o tradicional kir e a sua versão royal.

Mas além da fruta e do licor, Cassis é também um vilarejo turístico que fica a sudeste de Marseille e que não deixa de lembrar Paraty, mesmo tendo-se em mente as diferenças entre as duas belas cidades, que não são poucas. Talvez esta aproximação seja apenas mais um exemplo de como a subjetividade e a saudade podem influenciar avaliações e comparações.

Cassis tem como principais atrações seu pequeno e velho porto (transformado em marina), com seus bares, restaurantes e lojas; seus vinhedos (a apelação Cassis é bastante conhecida, sobretudo graças ao vinho branco da região); suas praias; o Cap Canaille e também as Calanques.

Ah, as Calanques... Pequenas baías em forma de V, que vão de Cassis até Marseille, nas quais o já calmo mediterrâneo se torna uma verdadeira piscina azul-turquesa. Um paraíso, sobretudo para quem gosta de nadar e do contato com a água do mar. Existem 14 calanques, entre as quais Port-Pin, Port-Miou e En-Vau, as mais próximas de Cassis, que podem ser acessadas com uma caminhada repleta de subidas íngrimes.

É possível também fazer o passeio de barco, saindo do porto de Cassis ou de Marseille. Ainda que dos barcos veja-se muito bem o esplendor tanto das falésias que formam as calanques, quanto das suas águas transparentes, o passeio é curto, e o melhor mesmo é passar pelo menos uma boa parte do dia em uma delas, de preferência na de En-Vau, sem dúvida a mais bonita entre as três calanques citadas.

O Mistral, famoso vento da região, apesar de ajudar a abrir o tempo, faz com que a temperatura da água caia drasticamente, além de deixar o mar agitado, a ponto de, às vezes, impedir o passeio de caiaque. O Mistral, que pode chegar a 100 km/h, resseca o ar e a vegetação por onde passa, e quando ele sopra, o risco de incêndio em geral aumenta bastante. Neste caso, o acesso por terra e a permanência nas calanques são proibidos.

Para quem prefere um contato mais direto com o mar, uma outra possibilidade é fazer o percurso de caiaque, que podem ser alugados no porto de Cassis, de onde se chega às calanques com menos de uma hora de remada bastante segura. Além do mar ficar bem calmo com bastante frequência, os cerca de 3 km que separam o porto das primeiras calanques são protegidos, de um lado, pela costa rochosa e, de outro, por boias que demarcam a área na qual a entrada dos barcos a motor é proibida.

Aqueles que estão em forma, conhecem o mar, sabem e gostam de nadar, podem, inclusive, deixar o caiaque de lado para irem a nado. Se forem acompanhados por alguém em caiaque, a aventura torna-se ainda mais segura.

Nas falésias é comum de se ver alpinistas ou ainda saltadores. Estes últimos usam como base para seus sensacionais mergulhos no mar as diversas plataformas formadas naturalmente nas falésias. Os saltos mais ousados podem chegar a mais de 20 metros!

Os meses de agosto e julho são os mais quentes, porém também os mais cheios. Em períodos de média temporada (maio, junho e setrembro) é possível juntar dias quentes e ensolarados com baixa frequentação turística, o que torna o passeio ainda mais agradável.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Um Pouquinho de Marseille


Com quase um milhão de habitantes, Marseille é a segunda commune da França. A cerca de 800 km de Paris, a distância é reduzida relativamente pelo TGV, que leva apenas 3 horas para ir de uma cidade a outra.

Fundada pelos gregos em tordo de 600 A.C., Massalia (ou Marselha em provençal, ou ainda, Massilia em latim) é a mais antiga aglomeração urbana da França, bem como o primeiro porto do país e do Mediterrâneo. A cidade apresenta uma série de atrativos e também de problemas, descritos de forma apaixonada e um tanto o quanto poética pelo escritor francês de origem ítalo-espanhola Jean-Claude Izzo (Marseille, 20/06/1945 - 26/01/2000). Izzo permeia seus romances policiais com análises sociológicas inteligentes e sóbrias, sobretudo em torno dos imigrantes, dos franceses filhos de imigrantes - ele mesmo filho de pai imigrante de origem italiana e de mãe filha de espanhois – e das dificuldades enfrentadas por estes. Inclusive, o caso de Marseille pode ser estendido a outras cidades francesas, especialmente Paris e sua região metropolitana.

Marseille tem como limite geográfico a sudeste as famosas Calanques, de uma beleza impar, às quais se segue a também belíssima e pequenina Cassis, com seu porto e sua elevada concentração de turistas. Cassis por sua vez é limitada a sudeste pelo Cap Canaille que, devido às propriedades das rochas que o formam, muda de cor sob o sol, tal qual um camaleão.

Várias pessoas do local afirmam que vestígios de carros podem ser vistos por quem passa de barco ao longo do cabo. E reza a lenda que estes carros teriam sido lançados no precipício por mafiosos, com pessoas vivas dentro - adversários ou traidores da máfia de Marseille - como forma de punição. Plausível.

Em seu penúltimo livro, Solea, o último da triologia marseillese - que aliás eu recomendo a quem gosta do gênero policial - Izzo faz uma análise sólida e documentada sobre a máfia local.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Neve em Paris

Nesta segunda-feira, Paris amanheu sob a neve, que caiu sem parar também durante todo o dia, que ganhou uma tonalidade meio branca meio cinza. A neve em Paris não é raridade, mas também não é a tônica da cidade. Chega a nevar duas vezes na mesma estação, mas tem inverno em que a neve passa em branco, ou seja, não vem. Ao menos, esta tem sido a frequência durante os meus seis anos na Cidade-Luz, período, cabe ressaltar, insuficiente para qualquer avaliação mais precisa em termos de regularidade climática.

Vale lembrar porém que no final do ano passado, mais exatamente na madrugada do dia 30 de novembro de 2008, a três semanas portanto do final do outono, nevou em Paris, o que não acontecia há várias décadas, provavelmente mais um sinal das mudanças climáticas que já começaram a se manisfestar em diversos pontos do planeta.

Paris é uma cidade intrinsecamente romântica, e a neve, sem dúvida acentua este aspecto. Recordo-me bem de um começo de namoro, saindo de um pub de jazz no cinquième, sob uma neve de flocos enormes. A caminhada de 20 minutos até chegarmos em casa foi algo inesquecível.

A neve já tinha me acolhido com sua alva beleza logo após minha chegada em Paris, no final de novembro de 2002. Alguns dias após o Natal do mesmo ano, ela caiu forte novamente, vestindo de branco a cidade, preparando-a para o réveillon. Lembro-me que estava jogando bola com a rapaziada na Cité Universitaire, onde morava, quando começou a nevar. A pelada teve que terminar, não por causa do frio - senão, ela não nem teria nem começado - mas sim por causa da visibilidade, pois a medida em que a neve se intensificava, não conseguíamos mais ver a bola. Depois de várias caneladas, resolvermos parar.

Lamento apenas que a neve de hoje esteja manchada pelo vermelho conflito em Gaza ...